São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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CRISE

Plano Real esperava trazer fartura de dólares e dispensar acordo com o Fundo, mas crises da Ásia, do México e da Rússia espantaram os investidores; empréstimo não foi suficiente para segurar real valorizado e dólar disparou

FMI desconfia do Real e evita três quebras do país

GUSTAVO PATÚ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Para quem viu Luiz Inácio Lula da Silva se entender com o FMI durante a campanha, deve ser difícil imaginar Fernando Henrique Cardoso, poucos meses antes de ganhar a Presidência, em desacordo com o organismo. Pois aconteceu: em março de 1994, FHC, então ministro da Fazenda, ouviu, em Washington, um público e inesperado "não" do Fundo Monetário Internacional.
Em conversa reservada, FHC soube pelo então diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, que havia dúvidas quanto à consistência do que viria a ser chamado de Plano Real, especialmente em relação ao equilíbrio das contas públicas após o fim da inflação. Depois, houve almoço com as equipes de ambos e uma nota protocolar de apoio ao Brasil.
FHC e sua equipe mantiveram a pose, agradeceram os elogios, voltaram ao Brasil e decidiram tocar o programa em frente. Mas com o propósito íntimo de não reatarem mais os entendimentos com o Fundo.
Na época, um acordo com o FMI parecia desnecessário. Os bancos credores concordaram em renegociar a dívida externa brasileira. Vivia-se um momento de crescimento econômico global e volumosos investimentos nos países chamados emergentes. O Real apostava na fartura de dólares emprestados para importar barato e derrubar a inflação.

Orgulho engolido
Quatro anos e meio depois, em outubro de 98, FHC engoliu o orgulho de presidente recém-reeleito e despachou para Washington uma missão, comandada pelo então secretário-executivo da Fazenda, Pedro Parente, para obter a qualquer custo um megapacote de socorro internacional ao país.
A aposta de que o mundo financiaria a política do real sobrevalorizado até a aprovação das reformas do Estado brasileiro havia sido derrubada pelas crises do México (95), da Ásia (97) e da Rússia (98). A dívida pública passara de R$ 150 bilhões para mais de R$ 360 bilhões, os juros superavam 40% ao ano e os investidores fugiam do país.
O temor de uma crise financeira mundial e as boas relações de FHC com Bill Clinton, que comandava os EUA, renderam um socorro de US$ 41,5 bilhões -US$ 18 bilhões só do FMI. O Brasil ainda arrancou do Fundo um apoio relutante à decisão de não desvalorizar o real.
O dinheiro não foi suficiente para segurar o dólar na cotação de R$ 1,22 que o governo tentava segurar no início de janeiro de 99. Um novo ataque especulativo ameaçou levar a zero as reservas em moeda forte do Banco Central brasileiro, que, sem alternativa, permitiu que o mercado promovesse a maxidesvalorização do real.
Naquele ano, o país flertou com um colapso de proporções argentinas, na forma de inflação descontrolada, recessão profunda e moratória da dívida externa. Dois presidentes do BC, Gustavo Franco e Francisco Lopes, caíram no intervalo de poucas semanas.
FHC, porém, ainda tinha força política para promover o rigoroso programa de ajuste fiscal imposto pelo FMI e controlar a CPI dos Bancos criada no Senado para investigar operações realizadas na queda do real. Com o apoio do Fundo e a política de Armínio Fraga no BC, a confiança foi restabelecida e o desastre foi evitado.

Otimismo passageiro
O ano 2000 foi de otimismo. A inflação e os juros caíram, e o Produto Interno Bruto voltou a ter crescimento satisfatório, acima de 4%. O governo comemorava a desvalorização cambial mais bem-sucedida entre os emergentes e não planejava renovar o acordo com o FMI, que expiraria no penúltimo ano do mandato do presidente.
Mas nos dois anos seguintes ficaria claro que a conta da máxi não havia sido encerrada. Em 2001, a economia dos Estados Unidos parou de crescer, a Argentina entrou em colapso e o Brasil viveu a crise de escassez de energia elétrica. O dólar disparou e levou junto a inflação e a dívida pública -e, em agosto de 2001, a poucos dias do ataque terrorista contra os EUA, o governo FHC recebia mais US$ 13,8 bilhões do FMI e se comprometia a manter os gastos sob controle por mais um ano.
Mais uma vez, o apoio do Fundo, negado à Argentina, acalmou os investidores nacionais e estrangeiros, que passaram a ressaltar as diferenças entre o Brasil e o país vizinho. A crença de que "os fundamentos da economia brasileira são sólidos", porém, perdeu boa parte de sua força.
A dívida pública iniciou 2002 já perto dos R$ 700 bilhões, mas os dólares do FMI garantiam alguma tranquilidade nos primeiros meses do ano. A crise americana, porém, se agravou com a descoberta das fraudes contábeis praticadas por grandes empresas durante os anos de euforia financeira. Uma nova onda de desconfiança abalou o mundo em geral e o Brasil em particular. A escassez de crédito se mostrou mais grave que as de anos anteriores, atingindo até as exportações.
Diferentemente do que ocorreu em 98, dessa vez o recurso ao Fundo não pôde aguardar o desfecho das eleições. Para conseguir o novo socorro, um recorde de US$ 30 bilhões, FHC tratou de articular o apoio dos principais candidatos à sua sucessão ao acordo. Afinal, era preciso se comprometer com um aperto fiscal ainda mais rígido até 2005.
Lula, que até o início do ano ainda mantinha o histórico propósito de romper o acordo com o FMI, aceitou as condições -e, ironicamente, assumirá o governo com uma relação com o Fundo mais umbilical que a de seus antecessores "neoliberais" FHC e Fernando Collor.


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