São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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ISOLADOS, PAULISTAS PROMOVEM A CONSPIRAÇÃO DEMOCRÁTICA DA ARTE

A antítese do Brasil

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O golpe de 1930 teve um grande impacto sobre a cultura. No seu discurso de posse, Getúlio Vargas mencionou a Semana de Arte Moderna de 1922 e afirmou estar assumindo a plataforma dos intelectuais paulistas. Na sequência, nomeou Lúcio Costa, com 28 anos então, como diretor da Escola Nacional de Belas Artes, com a tarefa de modernizar o ensino de arte no país.
O jovem arquiteto incontinênti rumou para São Paulo e, em conluio com os artistas locais, concebeu o Salão de 1931. Num instante o modernismo tomou de assalto o Rio de Janeiro, capital do país e bastão das academias. Foi um escândalo.
Mas na política as coisas tomavam um curso diferente. A ruína progressiva da cafeicultura paulista, culminando com o colapso no crash econômico de 29, implodiu o esquema político pelo qual a elite cafeeira controlava o país desde o início do regime republicano. Os elementos dinâmicos da economia paulista haviam se tornado a indústria e a policultura, ambos encabeçados por novas forças sociais, provindas das comunidades imigrantes.
As lideranças tradicionais viram em Vargas a chance de reformular o seu sistema de dominação. Mas Getúlio tinha seus próprios planos.
Esses desentendimentos se agravaram até o clímax da guerra de 1932. A atitude recalcitrante acabou redefinindo a imagem de São Paulo no contexto do novo regime varguista. São Paulo não era o Brasil, era a sua antítese. Era o pomo da discórdia, o foco dos estrangeiros, dos movimentos e das idéias exóticas, do cosmopolitismo apátrida, do capitalismo selvagem, dos anarquistas, dos comunistas, dos agitadores e subversivos de toda ordem.
O verdadeiro Brasil estava na gente simples e brava dos campos, na pureza das Alterosas, nos sertões agrestes do Norte, na fronteira viril do Oeste e, cada vez mais evidente, na síntese da cultura popular urbana, por meio da mestiçagem étnica e cultural de todas as raças e todas as regiões.

SÃO PAULO À DERIVA
O credo do novo regime era o nacionalismo intransigente e enérgico. Por meio de uma sofisticada máquina de propaganda, esse catecismo seria canalizado por meio dos novos recursos de comunicação, o rádio, o cinema, a indústria fonográfica, os cartazes em todos os muros.
Ele se cristalizaria nos teatros de revista da praça Tiradentes, nas chanchadas da Atlântida, nos programas da Rádio Nacional, nos estádios de futebol, no Carnaval e nos desfiles das escolas de samba, todos patrocinados e orquestrados pelo Estado.
Que a fonte desse nacionalismo estivesse em intelectuais como Paulo Prado, o inspirador e patrocinador da Semana de 22, na sua aversão à ascensão dos imigrantes que ameaçavam os privilégios da sua classe, não deixa de ser uma ironia. O fato é que, nesse novo enquadramento cultural, São Paulo ficou à deriva. Se tornou "o túmulo do samba".
Relegados pelo novo regime e tendo perdido seus patronos da oligarquia cafeeira, os artistas locais se viram na contingência de se organizar por si mesmos, por meio de clubes e associações voltados para a promoção de exposições e eventos artísticos em que pudessem exibir suas obras.
Proliferaram assim órgãos autônomos como a Spam (Sociedade Pró-Arte Moderna), o CAM (Clube dos Artistas Modernos), o Salão de Maio e a Família Artística Paulista, congregando os egressos do modernismo e das escolas de arte. Mais interessante ainda eram os movimentos que vinham da base da pirâmide social, organizações operárias e comunitárias que constituíam associações culturais, artísticas e recreativas, empenhadas na busca de novos padrões democráticos de educação e de arte solidária.
Elas pululavam pelas comunidades imigrantes, só os italianos contavam com mais de cem delas. Desse processo de agregações espontâneas nasceria, a partir de um núcleo de pintores de paredes, o Grupo do Santa Helena, reunindo mestres como Volpi, Rebollo, Zanini, Pennacchi, Bonadei, Rizzotti e Graciano.
Com a instituição do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo, em 1937, os diversos grupos artísticos da cidade tenderam a se fundir dentro da nova entidade, que, além de organizar eventos e exposições, mantinha escolas para crianças operárias e circulava mostras periódicas pelos bairros periféricos, difundindo arte, educação e valores democráticos.
As artes plásticas se tornaram assim um poderoso nexo de coesão social e um recurso simbólico decisivo da ação política. Esse processo acabaria atraindo os jovens intelectuais radicais da recém-fundada Universidade de São Paulo a buscar formas de colaboração cada vez mais estreitas com a comunidade artística.
Foi em meio a esse contexto turbulento que o meteoro Ciccillo Matarazzo caiu sobre o ambiente cultural paulista. Membro de uma das famílias pioneiras e mais abastadas do empresariado industrial, Francisco Matarazzo Sobrinho falava português com um sotaque engastalhado entre o italiano e o francês, as duas fontes da sua educação européia. Um providencial achaque de saúde o levou à clínica de Davos, na Suíça, em 1948.
Ali ele conheceu outro convalescente ilustre, Nierendorf, o diretor do Museu Guggenheim de Nova York. Seu interesse por arte já o havia aproximado da comunidade artística paulista. De modo que dali mesmo, em italiano e português, ele redigiu a carta-manifesto de um futuro Museu de Arte Moderna de São Paulo, com vistas já à montagem de uma exposição monumental, reunindo obras decisivas da trajetória internacional da arte moderna.
Com sua compreensão aguçada do novo contexto econômico mundial e os conselhos preciosos de Nierendorf, Ciccillo pôde avaliar a reconfiguração do mercado artístico no pós-guerra.
O modernismo emergiu do conflito consagrado e oficializado. Mas a dinâmica da circulação das obras modernas passava agora por um pólo emergente, os Estados Unidos, com raízes no Museu de Arte Moderna de Nova York e no Guggenheim. Na outra extremidade desse eixo ficavam Paris, com o prestígio dos artistas, das obras e da crítica, e Veneza, com sua Bienal, como a grande vitrine mundial.


AS ARTES PLÁSTICAS SE TORNARAM UM PODEROSO NEXO DE COESÃO SOCIAL EM SP



PARIS-VENEZA
Num instante Ciccillo estava fazendo contatos em Veneza, contratando em Paris dois peritos, críticos e curadores estratégicos, René Drouin e Léon Degan, e estabelecendo uma agenda com o MoMA e o Guggenheim. Chegando ao Brasil, cria o MAM em 49, nomeia Degan seu diretor e, com os artistas e intelectuais locais, começa a agitar a montagem da 1ª Bienal das Artes de São Paulo. Em 51 inaugurava não só a mostra, com mais de 1.800 obras dos maiores mestres modernos, como também uma Bienal de Arquitetura, uma Bienal de Teatro e um Festival Internacional de Cinema. São Paulo punha o Brasil e a América Latina no panorama da cultura internacional.
Que Ciccillo soube usar seus recursos para dar expressão ao efervescente meio artístico e cultural paulista fica evidente no modo como, depois dessa primeira experiência, a 2ª Bienal é programada para coincidir com os festejos do 4º Centenário de São Paulo. Como o grande patrono do evento, ele institui o cenário arquitetônico e paisagístico do Ibirapuera como um grande parque popular e ali, no Pavilhão das Nações, centraliza o festival multiartístico ao redor da "Guernica", de Picasso, o ícone mundial da resistência antifascista. Se alguém se pergunta se as Bienais ainda fazem sentido, a resposta é sim, enquanto souberem honrar esse legado.

Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor, entre outros, de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras).


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