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ISOLADOS,
PAULISTAS
PROMOVEM A
CONSPIRAÇÃO
DEMOCRÁTICA
DA ARTE
A antítese do Brasil
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O golpe de 1930 teve
um grande impacto
sobre a cultura. No
seu discurso de
posse, Getúlio Vargas mencionou
a Semana de Arte Moderna de
1922 e afirmou estar assumindo a
plataforma dos intelectuais paulistas. Na sequência, nomeou Lúcio Costa, com 28 anos então, como diretor da Escola Nacional de
Belas Artes, com a tarefa de modernizar o ensino de arte no país.
O jovem arquiteto incontinênti
rumou para São Paulo e, em conluio com os artistas locais, concebeu o Salão de 1931. Num instante o modernismo tomou de assalto o Rio de Janeiro, capital do
país e bastão das academias. Foi
um escândalo.
Mas na política as coisas tomavam um curso diferente. A ruína
progressiva da cafeicultura paulista, culminando com o colapso
no crash econômico de 29, implodiu o esquema político pelo qual a
elite cafeeira controlava o país
desde o início do regime republicano. Os elementos dinâmicos da
economia paulista haviam se tornado a indústria e a policultura,
ambos encabeçados por novas
forças sociais, provindas das comunidades imigrantes.
As lideranças tradicionais viram
em Vargas a chance de reformular o seu sistema de dominação.
Mas Getúlio tinha seus próprios
planos.
Esses desentendimentos se
agravaram até o clímax da guerra
de 1932. A atitude recalcitrante
acabou redefinindo a imagem de
São Paulo no contexto do novo
regime varguista. São Paulo não
era o Brasil, era a sua antítese. Era
o pomo da discórdia, o foco dos
estrangeiros, dos movimentos e
das idéias exóticas, do cosmopolitismo apátrida, do capitalismo
selvagem, dos anarquistas, dos
comunistas, dos agitadores e subversivos de toda ordem.
O verdadeiro Brasil estava na
gente simples e brava dos campos, na pureza das Alterosas, nos
sertões agrestes do Norte, na fronteira viril do Oeste e, cada vez
mais evidente, na síntese da cultura popular urbana, por meio da
mestiçagem étnica e cultural de
todas as raças e todas as regiões.
SÃO PAULO À DERIVA
O credo do novo regime era o
nacionalismo intransigente e
enérgico. Por meio de uma sofisticada máquina de propaganda, esse catecismo seria canalizado por
meio dos novos recursos de comunicação, o rádio, o cinema, a
indústria fonográfica, os cartazes
em todos os muros.
Ele se cristalizaria nos teatros de
revista da praça Tiradentes, nas
chanchadas da Atlântida, nos
programas da Rádio Nacional,
nos estádios de futebol, no Carnaval e nos desfiles das escolas de
samba, todos patrocinados e orquestrados pelo Estado.
Que a fonte desse nacionalismo
estivesse em intelectuais como
Paulo Prado, o inspirador e patrocinador da Semana de 22, na sua
aversão à ascensão dos imigrantes
que ameaçavam os privilégios da
sua classe, não deixa de ser uma
ironia. O fato é que, nesse novo
enquadramento cultural, São
Paulo ficou à deriva. Se tornou "o
túmulo do samba".
Relegados pelo novo regime e
tendo perdido seus patronos da
oligarquia cafeeira, os artistas locais se viram na contingência de
se organizar por si mesmos, por
meio de clubes e associações voltados para a promoção de exposições e eventos artísticos em que
pudessem exibir suas obras.
Proliferaram assim órgãos autônomos como a Spam (Sociedade Pró-Arte Moderna), o CAM
(Clube dos Artistas Modernos), o
Salão de Maio e a Família Artística
Paulista, congregando os egressos
do modernismo e das escolas de
arte. Mais interessante ainda
eram os movimentos que vinham
da base da pirâmide social, organizações operárias e comunitárias
que constituíam associações culturais, artísticas e recreativas, empenhadas na busca de novos padrões democráticos de educação e
de arte solidária.
Elas pululavam pelas comunidades imigrantes, só os italianos
contavam com mais de cem delas.
Desse processo de agregações espontâneas nasceria, a partir de
um núcleo de pintores de paredes, o Grupo do Santa Helena,
reunindo mestres como Volpi,
Rebollo, Zanini, Pennacchi, Bonadei, Rizzotti e Graciano.
Com a instituição do Sindicato
dos Artistas Plásticos de São Paulo, em 1937, os diversos grupos artísticos da cidade tenderam a se
fundir dentro da nova entidade,
que, além de organizar eventos e
exposições, mantinha escolas para crianças operárias e circulava
mostras periódicas pelos bairros
periféricos, difundindo arte, educação e valores democráticos.
As artes plásticas se tornaram
assim um poderoso nexo de coesão social e um recurso simbólico
decisivo da ação política. Esse
processo acabaria atraindo os jovens intelectuais radicais da recém-fundada Universidade de
São Paulo a buscar formas de colaboração cada vez mais estreitas
com a comunidade artística.
Foi em meio a esse contexto turbulento que o meteoro Ciccillo
Matarazzo caiu sobre o ambiente
cultural paulista. Membro de uma
das famílias pioneiras e mais
abastadas do empresariado industrial, Francisco Matarazzo Sobrinho falava português com um
sotaque engastalhado entre o italiano e o francês, as duas fontes da
sua educação européia. Um providencial achaque de saúde o levou à clínica de Davos, na Suíça,
em 1948.
Ali ele conheceu outro convalescente ilustre, Nierendorf, o diretor do Museu Guggenheim de
Nova York. Seu interesse por arte
já o havia aproximado da comunidade artística paulista. De modo que dali mesmo, em italiano e
português, ele redigiu a carta-manifesto de um futuro Museu de
Arte Moderna de São Paulo, com
vistas já à montagem de uma exposição monumental, reunindo
obras decisivas da trajetória internacional da arte moderna.
Com sua compreensão aguçada
do novo contexto econômico
mundial e os conselhos preciosos
de Nierendorf, Ciccillo pôde avaliar a reconfiguração do mercado
artístico no pós-guerra.
O modernismo emergiu do
conflito consagrado e oficializado. Mas a dinâmica da circulação
das obras modernas passava agora por um pólo emergente, os Estados Unidos, com raízes no Museu de Arte Moderna de Nova
York e no Guggenheim. Na outra
extremidade desse eixo ficavam
Paris, com o prestígio dos artistas,
das obras e da crítica, e Veneza,
com sua Bienal, como a grande vitrine mundial.
AS ARTES
PLÁSTICAS SE
TORNARAM
UM PODEROSO
NEXO DE
COESÃO
SOCIAL EM SP
|
PARIS-VENEZA
Num instante Ciccillo estava fazendo contatos em Veneza, contratando em Paris dois peritos,
críticos e curadores estratégicos,
René Drouin e Léon Degan, e estabelecendo uma agenda com o
MoMA e o Guggenheim. Chegando ao Brasil, cria o MAM em 49,
nomeia Degan seu diretor e, com
os artistas e intelectuais locais, começa a agitar a montagem da 1ª
Bienal das Artes de São Paulo. Em
51 inaugurava não só a mostra,
com mais de 1.800 obras dos
maiores mestres modernos, como também uma Bienal de Arquitetura, uma Bienal de Teatro e
um Festival Internacional de Cinema. São Paulo punha o Brasil e
a América Latina no panorama da
cultura internacional.
Que Ciccillo soube usar seus recursos para dar expressão ao efervescente meio artístico e cultural
paulista fica evidente no modo
como, depois dessa primeira experiência, a 2ª Bienal é programada para coincidir com os festejos
do 4º Centenário de São Paulo.
Como o grande patrono do evento, ele institui o cenário arquitetônico e paisagístico do Ibirapuera
como um grande parque popular
e ali, no Pavilhão das Nações, centraliza o festival multiartístico ao
redor da "Guernica", de Picasso, o
ícone mundial da resistência antifascista. Se alguém se pergunta se
as Bienais ainda fazem sentido, a
resposta é sim, enquanto souberem honrar esse legado.
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor, entre outros, de "Orfeu Extático na Metrópole"
(Companhia das Letras).
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