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Treinador é coisa de branco
Fracasso de Domingos da Guia, Leônidas e Djalma Santos como técnicos evidencia que o sucesso
e o respeito obtido nos gramados quase nunca
chega ao banco de reservas
JOSÉ PAULO FLORENZANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O futebol tem sido exaltado ao longo do tempo como o
reino da democracia racial
no Brasil e espaço de afirmação de afrodescendentes como Domingos da Guia, Leônidas da Silva e Djalma Santos. Todavia, em profundo
contraste com o êxito obtido
nos gramados, no momento
em que esses atletas se lançaram na carreira de treinador,
colheram apenas insucessos.
Em meados dos anos 1940,
Domingos da Guia ainda se
mostrava capaz de atuações
magistrais. A "Gazeta Esportiva" o considerara "soberbo" no prélio entre Brasil e
Argentina disputado no Pacaembu e aproveitou para
persuadir o Corinthians, clube onde atuava o zagueiro, a
renovar seu contrato.
Após pendurar as chuteiras, com efeito, Da Guia foi
tentar a sorte como treinador. Mas em 1954 o mesmo
órgão de imprensa lamentava sua inaptidão, incluindo-o no rol daqueles "que nada
-mas nada mesmo- realizaram como técnicos".
Mais ou menos na mesma
época, Leônidas da Silva,
uma vez encerrada a carreira
de atleta, iniciava no São
Paulo a de auxiliar técnico e,
pouco depois, a de treinador.
"ORDENS DE UM NEGRO"
A experiência teve curta
duração, abortada devido
aos conflitos com o elenco.
A princípio, no insucesso
do Diamante Negro havia
apenas razões de ordem esportiva. Mas o comentário recolhido à época pelo sociólogo Roger Bastide, em um táxi, permite abordar o caso
sob outro ângulo. O motorista, torcedor do tricolor paulista, comentava assim os
percalços do time:
"O negro nada pode dar de
bom. Não pode comandar,
muito menos a brancos. Leônidas, como todos os negros,
é desorganizado e insubordinado. Sobretudo considerando que o clube compreende
brancos de boa família. Como é possível que aceitem ordens de um negro?"
O comentário traz a explicação da pergunta dirigida
mais tarde, pela imprensa
paulista, ao Diamante Negro:
"O grande Leônidas tinha tudo para vingar como técnico.
Por que fracassou?".
A resposta reside na existência de uma linha de cor
traçada para impedir ascensão do negro aos postos de
direção reservados aos brancos, como o de técnico de
uma grande equipe.
Nesse momento, assinala
o sociólogo Florestan Fernandes, ele se depara com
estereótipos para desqualificá-lo, sob o pretexto de ser
"autoritário, tirânico, desagradável para com os colegas
e subordinados".
O terceiro exemplo remete
à celebração dos 50 anos do
Palmeiras, em 1964. Insatisfeitos com a campanha do time, os dirigentes demitiram
Silvio Pirilo, substituindo-o
por Mário Travaglini. Mas decidiram respaldá-lo com o
"Quarteto da Esperança"
-Julinho Botelho, Valdemar
Carabina e Djalma Santos.
Vinte anos após a direção
técnica exercida no gramado
por Domingos da Guia e 20
anos antes da autogestão da
Democracia Corintiana, a Democracia Palmeirense adotou um sistema de cogestão
baseado no saber dos seus jogadores.
ÉTICA X ESTÉTICA
A vocação manifesta de
Djalma Santos, porém, como
nos casos precedentes, não
seria suficiente para levá-lo a
trilhar uma trajetória bem-sucedida como treinador.
E, no entanto, o reiterado
"fracasso" do técnico negro
talvez possua na força da tradição de autonomia dos atletas a sua contrapartida.
Pois, diante da linha de cor
que o impede de ascender na
estrutura dos clubes, o jogador negro tem sido levado a
desempenhar um papel de
relevo na auto-organização
dos times nacionais, reivindicando o saber que as comissões técnicas, em nome
do futebol científico, desqualificam para legitimar o exercício do seu poder.
Se essa hipótese estiver
correta, podemos, então,
concluir reconhecendo na figura do comandante negro
dos gramados o elo fundamental entre a dimensão estética do futebol concebido
como arte e a dimensão ética
do futebol exercido como
prática de liberdade.
JOSÉ PAULO FLORENZANO é pós-doutorando em antropologia na USP e
bolsista da Fapesp
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