São Paulo, domingo, 30 de maio de 2010

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Treinador é coisa de branco

Fracasso de Domingos da Guia, Leônidas e Djalma Santos como técnicos evidencia que o sucesso e o respeito obtido nos gramados quase nunca chega ao banco de reservas

JOSÉ PAULO FLORENZANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O futebol tem sido exaltado ao longo do tempo como o reino da democracia racial no Brasil e espaço de afirmação de afrodescendentes como Domingos da Guia, Leônidas da Silva e Djalma Santos. Todavia, em profundo contraste com o êxito obtido nos gramados, no momento em que esses atletas se lançaram na carreira de treinador, colheram apenas insucessos.
Em meados dos anos 1940, Domingos da Guia ainda se mostrava capaz de atuações magistrais. A "Gazeta Esportiva" o considerara "soberbo" no prélio entre Brasil e Argentina disputado no Pacaembu e aproveitou para persuadir o Corinthians, clube onde atuava o zagueiro, a renovar seu contrato.
Após pendurar as chuteiras, com efeito, Da Guia foi tentar a sorte como treinador. Mas em 1954 o mesmo órgão de imprensa lamentava sua inaptidão, incluindo-o no rol daqueles "que nada -mas nada mesmo- realizaram como técnicos".
Mais ou menos na mesma época, Leônidas da Silva, uma vez encerrada a carreira de atleta, iniciava no São Paulo a de auxiliar técnico e, pouco depois, a de treinador.

"ORDENS DE UM NEGRO"
A experiência teve curta duração, abortada devido aos conflitos com o elenco.
A princípio, no insucesso do Diamante Negro havia apenas razões de ordem esportiva. Mas o comentário recolhido à época pelo sociólogo Roger Bastide, em um táxi, permite abordar o caso sob outro ângulo. O motorista, torcedor do tricolor paulista, comentava assim os percalços do time: "O negro nada pode dar de bom. Não pode comandar, muito menos a brancos. Leônidas, como todos os negros, é desorganizado e insubordinado. Sobretudo considerando que o clube compreende brancos de boa família. Como é possível que aceitem ordens de um negro?"
O comentário traz a explicação da pergunta dirigida mais tarde, pela imprensa paulista, ao Diamante Negro: "O grande Leônidas tinha tudo para vingar como técnico.
Por que fracassou?". A resposta reside na existência de uma linha de cor traçada para impedir ascensão do negro aos postos de direção reservados aos brancos, como o de técnico de uma grande equipe.
Nesse momento, assinala o sociólogo Florestan Fernandes, ele se depara com estereótipos para desqualificá-lo, sob o pretexto de ser "autoritário, tirânico, desagradável para com os colegas e subordinados".
O terceiro exemplo remete à celebração dos 50 anos do Palmeiras, em 1964. Insatisfeitos com a campanha do time, os dirigentes demitiram Silvio Pirilo, substituindo-o por Mário Travaglini. Mas decidiram respaldá-lo com o "Quarteto da Esperança" -Julinho Botelho, Valdemar Carabina e Djalma Santos.
Vinte anos após a direção técnica exercida no gramado por Domingos da Guia e 20 anos antes da autogestão da Democracia Corintiana, a Democracia Palmeirense adotou um sistema de cogestão baseado no saber dos seus jogadores.

ÉTICA X ESTÉTICA
A vocação manifesta de Djalma Santos, porém, como nos casos precedentes, não seria suficiente para levá-lo a trilhar uma trajetória bem-sucedida como treinador.
E, no entanto, o reiterado "fracasso" do técnico negro talvez possua na força da tradição de autonomia dos atletas a sua contrapartida.
Pois, diante da linha de cor que o impede de ascender na estrutura dos clubes, o jogador negro tem sido levado a desempenhar um papel de relevo na auto-organização dos times nacionais, reivindicando o saber que as comissões técnicas, em nome do futebol científico, desqualificam para legitimar o exercício do seu poder.
Se essa hipótese estiver correta, podemos, então, concluir reconhecendo na figura do comandante negro dos gramados o elo fundamental entre a dimensão estética do futebol concebido como arte e a dimensão ética do futebol exercido como prática de liberdade.


JOSÉ PAULO FLORENZANO é pós-doutorando em antropologia na USP e bolsista da Fapesp


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