São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Em Seul, manifestações, bedéis e programa de família evidenciam os novos tempos na Coréia e no futebol

Espectadores viram colegas de trabalho

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL

Primeiro, foram animadores transformando o estádio de Seul num programa de auditório.
Depois, os voluntários coreanos formando uma torcida "fake" do Senegal. E ainda, dez minutos antes de acabar o jogo, uma multidão de espectadores disparando sem esperar o fim de um ritual sagrado: a partida de abertura de uma Copa. Só para chegar mais cedo à estação do metrô.
O começo do 17º Mundial de futebol foi um evento um tanto excêntrico, na noite de ontem na capital da Coréia do Sul, manhã de sexta-feira no Brasil.
Parecia programa do Silvio Santos, do Gugu, do Ratinho. A Coréia inovou com uma figura típica de programa de auditório: a claque, formada por centenas de jovens animadores. Todos homens (os gandulas eram mulheres).
Não eram como as cheerleaders, aquelas garotas que ficam no campo tentando empolgar a torcida. Mas bedéis espalhados por todo o estádio mostrando ao público como se comportar.
A hora de levantar. De bater num tamborzinho distribuído à entrada. De ligar um bastão de luz. De pular. De gritar. De se aquietar. A cada momento, mostravam um cartaz. De um lado, em inglês. Do outro, em coreano.
Com batutas, como maestros, os animadores não sossegavam até o mais renitente cidadão obedecer. Engravatados se dobravam ao empenho dos rapazes vestidos de azul, verde, vermelho e até de um quase cinza que os fazia parecer com guardas da Revolução Cultural chinesa, nos anos 60.
Saíram de cena ao fim da festa inicial, pouco antes de França e Senegal abrirem a Copa num eloquente triunfo do time de ex-colonizados ante ex-colonizadores.
Nem tudo, entretanto, correu como no script preparado pelos organizadores e seguido à risca pelos seus animadores. Em todo o discurso, o presidente da Fifa, Joseph Blatter, foi apupado por torcedores franceses. Nada de mais para os dirigentes do futebol coreano, inimigos figadais do suíço.
Torcedores, porém, traficaram papel para dentro do estádio, o que está vetado para impedir que se suje o campo. Papel foi jogado para o alto, e o mundo não acabou. Um homem desfilou com um cartaz, defendendo a pluralidade racial na França.
Manifestações não faltaram. Mesmo com tráfego aéreo interditado na área do estádio, mísseis prontos para abater aeronaves invasoras e uma ordem impedindo protestos, a polícia falhou. A estação de metrô grudada ao estádio foi tomada por deficientes físicos.
Deitados no chão ou em cadeiras de rodas, interditaram o uso do elevador. Pediam melhores instalações. Não afetaram o fluxo de pessoas, mas fizeram barulho, cercados pela tropa de choque.
A cidade já amanhecera com sindicalistas diante dos hotéis denunciando o que consideram restrições ao direito de organização.
A polícia que falhou no metrô desmoralizou as tão propaladas medidas extraordinárias de prevenção ao terrorismo, citado na abertura pelo presidente da Coréia do Sul, Kim Dae-jung.
As bolsas dos jornalistas mal foram olhadas, nem eles passaram por revista. As de alguns nem abertas foram, isso que dias antes a organização se alarmou com um mero engano na distribuição de uma credencial jornalística.
Um cinturão de estandartes cercou o estádio: os manifestantes deficientes físicos, religiosos anunciando a iminência do fim dos tempos, coreanos desejando boas-vindas. Guias poliglotas se espalharam. Os estrangeiros, aos milhares, entraram por portões exclusivos, não congestionados.
O Brasil se fez presente. Valdir Monteiro, 35, disse ser de Curitiba. Disse morar em Amsterdã. Disse ter na cidade holandesa uma empresa de construção.
Vendia dois ingressos. Afirmava tê-los comprado por US$ 1.000, US$ 500 cada um. Queria receber a mesma quantia. "Estes são de primeira categoria", propagandeava em alguns idiomas. Em português, confidenciou: pagou US$ 100 por bilhete.
No estádio, umas 1.500 cadeiras não foram ocupadas, talvez fruto da confusão na distribuição de ingressos no exterior. Centenas de coreanos com camisa amarela, apoiando o Senegal, representaram os 2.000 voluntários que aderiram à equipe. Houve campanha para reforçar a simpatia com os países visitantes, promovendo a inscrição nas "torcidas locais".
O placar eletrônico, além de marcar os minutos digitalmente e os segundos com ponteiro, mostra a velocidade dos chutes. Havia muita mulher e muita criança no estádio. Um programa família.
A despeito dos problemas, a Coréia abriu com sucesso uma Copa pela qual se temia desde 1996, quando se decidiu que a sede seria compartilhada com o Japão.
Ao ser inaugurado, em 1969, o Gigante da Beira-Rio, estádio do Inter de Porto Alegre, chamou de "coréia" o setor de geral, onde se assiste -muito mal- ao jogo em pé. A "coréia" é "coréia" até hoje.
Era uma referência ao país asiático devastado na década anterior numa guerra (1950-1953) entre as partes sul e norte. Os gaúchos queriam dizer que não havia pior lugar para se estar, mesmo num estádio, do que a Coréia. Ontem se comprovou que os tempos mudaram. Inclusive no futebol.


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