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TURISTA OCIDENTAL
Em Seul, manifestações, bedéis e programa de família evidenciam os novos tempos na Coréia e no futebol
Espectadores viram colegas de trabalho
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL
Primeiro, foram animadores
transformando o estádio de Seul
num programa de auditório.
Depois, os voluntários coreanos
formando uma torcida "fake" do
Senegal. E ainda, dez minutos antes de acabar o jogo, uma multidão de espectadores disparando
sem esperar o fim de um ritual sagrado: a partida de abertura de
uma Copa. Só para chegar mais
cedo à estação do metrô.
O começo do 17º Mundial de futebol foi um evento um tanto excêntrico, na noite de ontem na capital da Coréia do Sul, manhã de
sexta-feira no Brasil.
Parecia programa do Silvio Santos, do Gugu, do Ratinho. A Coréia inovou com uma figura típica
de programa de auditório: a claque, formada por centenas de jovens animadores. Todos homens
(os gandulas eram mulheres).
Não eram como as cheerleaders, aquelas garotas que ficam
no campo tentando empolgar a
torcida. Mas bedéis espalhados
por todo o estádio mostrando ao
público como se comportar.
A hora de levantar. De bater
num tamborzinho distribuído à
entrada. De ligar um bastão de
luz. De pular. De gritar. De se
aquietar. A cada momento, mostravam um cartaz. De um lado,
em inglês. Do outro, em coreano.
Com batutas, como maestros,
os animadores não sossegavam
até o mais renitente cidadão obedecer. Engravatados se dobravam
ao empenho dos rapazes vestidos
de azul, verde, vermelho e até de
um quase cinza que os fazia parecer com guardas da Revolução
Cultural chinesa, nos anos 60.
Saíram de cena ao fim da festa
inicial, pouco antes de França e
Senegal abrirem a Copa num eloquente triunfo do time de ex-colonizados ante ex-colonizadores.
Nem tudo, entretanto, correu
como no script preparado pelos
organizadores e seguido à risca
pelos seus animadores. Em todo o
discurso, o presidente da Fifa, Joseph Blatter, foi apupado por torcedores franceses. Nada de mais
para os dirigentes do futebol coreano, inimigos figadais do suíço.
Torcedores, porém, traficaram
papel para dentro do estádio, o
que está vetado para impedir que
se suje o campo. Papel foi jogado
para o alto, e o mundo não acabou. Um homem desfilou com
um cartaz, defendendo a pluralidade racial na França.
Manifestações não faltaram.
Mesmo com tráfego aéreo interditado na área do estádio, mísseis
prontos para abater aeronaves invasoras e uma ordem impedindo
protestos, a polícia falhou. A estação de metrô grudada ao estádio
foi tomada por deficientes físicos.
Deitados no chão ou em cadeiras de rodas, interditaram o uso
do elevador. Pediam melhores
instalações. Não afetaram o fluxo
de pessoas, mas fizeram barulho,
cercados pela tropa de choque.
A cidade já amanhecera com
sindicalistas diante dos hotéis denunciando o que consideram restrições ao direito de organização.
A polícia que falhou no metrô
desmoralizou as tão propaladas
medidas extraordinárias de prevenção ao terrorismo, citado na
abertura pelo presidente da Coréia do Sul, Kim Dae-jung.
As bolsas dos jornalistas mal foram olhadas, nem eles passaram
por revista. As de alguns nem
abertas foram, isso que dias antes
a organização se alarmou com
um mero engano na distribuição
de uma credencial jornalística.
Um cinturão de estandartes cercou o estádio: os manifestantes
deficientes físicos, religiosos
anunciando a iminência do fim
dos tempos, coreanos desejando
boas-vindas. Guias poliglotas se
espalharam. Os estrangeiros, aos
milhares, entraram por portões
exclusivos, não congestionados.
O Brasil se fez presente. Valdir
Monteiro, 35, disse ser de Curitiba. Disse morar em Amsterdã.
Disse ter na cidade holandesa
uma empresa de construção.
Vendia dois ingressos. Afirmava tê-los comprado por US$ 1.000,
US$ 500 cada um. Queria receber
a mesma quantia. "Estes são de
primeira categoria", propagandeava em alguns idiomas. Em
português, confidenciou: pagou
US$ 100 por bilhete.
No estádio, umas 1.500 cadeiras
não foram ocupadas, talvez fruto
da confusão na distribuição de ingressos no exterior. Centenas de
coreanos com camisa amarela,
apoiando o Senegal, representaram os 2.000 voluntários que aderiram à equipe. Houve campanha
para reforçar a simpatia com os
países visitantes, promovendo a
inscrição nas "torcidas locais".
O placar eletrônico, além de
marcar os minutos digitalmente e
os segundos com ponteiro, mostra a velocidade dos chutes. Havia
muita mulher e muita criança no
estádio. Um programa família.
A despeito dos problemas, a Coréia abriu com sucesso uma Copa
pela qual se temia desde 1996,
quando se decidiu que a sede seria
compartilhada com o Japão.
Ao ser inaugurado, em 1969, o
Gigante da Beira-Rio, estádio do
Inter de Porto Alegre, chamou de
"coréia" o setor de geral, onde se
assiste -muito mal- ao jogo em
pé. A "coréia" é "coréia" até hoje.
Era uma referência ao país asiático devastado na década anterior
numa guerra (1950-1953) entre as
partes sul e norte. Os gaúchos
queriam dizer que não havia pior
lugar para se estar, mesmo num
estádio, do que a Coréia. Ontem
se comprovou que os tempos mudaram. Inclusive no futebol.
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