São Paulo, segunda, 1 de junho de 1998

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Sujeitos pés-quentes e sujeitos pés-frios

CARLOS HEITOR CONY

Esta será a primeira Copa do Mundo que acompanharei como jornalista. Nas anteriores era o free-lancer que via, sofria ou gozava o espetáculo em função do próprio umbigo. Nenhum compromisso com a verdade, nem mesmo com o fato em si. Via o que queria ver, fazia juízos para uso próprio, sem dar satisfações a ninguém.
Desta vez será diferente. Convidado por Josias de Souza para integrar o time da Folha que está indo para a cobertura da Copa do Mundo, aceitei com prazer -e com orgulho.
Nada a ver com o instinto turístico que sempre acompanha esse tipo de convite e cobertura. Já fui suficientes vezes a Paris e, não faz muito, ainda em março deste ano, lá estive, participando do Salão do Livro.
O motivo do prazer é óbvio, embora não acredite num torneio de alto nível técnico (geralmente, nas Copas do Mundo, as seleções jogam sob pressão tal e tamanha que, mesmo em jogos importantes, adversários de peso e tradição acabam oferecendo aos torcedores uma pelada de luxo).
O orgulho é profissional. Depois de tantos anos de jornalismo, cobrindo diversas áreas e editorias, duas delas ficaram distantes do meu apetite e da minha necessidade: a economia e o esporte.
Vou assim como um foca já desbotado pelo tempo mas com uma furiosa vontade de acertar, ou seja, de transmitir aos leitores não os atos e fatos da Copa do Mundo mas as impressões que elas provocam num torcedor que está longe de ser um xiita, um fundamentalista em matéria de futebol.
E a primeira dessas impressões antecede à própria Copa. É uma lembrança de Mário Filho, que deu nome ao Maracanã e é considerado o patrono da nossa crônica esportiva. Dono do "Jornal dos Sports", ele foi à Copa de 62 no Chile, quando o Brasil conquistou pela segunda vez a então Taça Jules Rimet.
No livro que publicou logo depois, ele tem uma deliciosa página sobre as comemorações da conquista. Todos gritavam, choravam, Garrincha era levado em triunfo, todos os brasileiros do outro lado da Cordilheira dos Andes invadiram o campo, a zorra era geral. Mário Filho foi um dos invasores e de repente, teve uma desconfiança: todos choravam, urravam, se abraçavam e comemoravam porque, num exame profundo de consciência, descobriam que não eram pés-frios, pelos menos os muitos ali presentes não eram pé-frios.
Não sei se ainda é assim, mas naquele tempo havia a fama dos pés-frios. Era letal. O sujeito podia ser bacana, querido por todos, ser um benemérito do esporte, ser um craque na imprensa esportiva, um cartola de sucesso. Mas se tinha a fama de pé-frio -adeus! Era mais discriminado do que um negro-gay-aidético-tabagista-eleitor do Enéas.
A alegria pelo trunfo, pelo bicampeonato no Chile, era real, imensa. Mas a euforia individual que tomou a todos ("Eu não sou pé-frio!") podia não ser maior mas empatava com a alegria geral pela vitória.
Dito isto, direi mais: torcerei pelo Brasil por vários motivos. O mais importante será esse: para não integrar a imensa, a execrável legião de pés-frios.



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