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Sujeitos pés-quentes e sujeitos pés-frios
CARLOS HEITOR CONY
Esta será a primeira Copa
do Mundo que acompanharei como jornalista. Nas anteriores era o free-lancer que via,
sofria ou gozava o espetáculo
em função do próprio umbigo.
Nenhum compromisso com a
verdade, nem mesmo com o fato em si. Via o que queria ver,
fazia juízos para uso próprio,
sem dar satisfações a ninguém.
Desta vez será diferente. Convidado por Josias de Souza para
integrar o time da Folha que está indo para a cobertura da Copa
do Mundo, aceitei com prazer
-e com orgulho.
Nada a ver com o instinto turístico que sempre acompanha
esse tipo de convite e cobertura.
Já fui suficientes vezes a Paris e,
não faz muito, ainda em março
deste ano, lá estive, participando
do Salão do Livro.
O motivo do prazer é óbvio,
embora não acredite num torneio de alto nível técnico (geralmente, nas Copas do Mundo, as
seleções jogam sob pressão tal e
tamanha que, mesmo em jogos
importantes, adversários de peso e tradição acabam oferecendo aos torcedores uma pelada
de luxo).
O orgulho é profissional. Depois de tantos anos de jornalismo, cobrindo diversas áreas e
editorias, duas delas ficaram distantes do meu apetite e da minha necessidade: a economia e o
esporte.
Vou assim como um foca já
desbotado pelo tempo mas com
uma furiosa vontade de acertar,
ou seja, de transmitir aos leitores
não os atos e fatos da Copa do
Mundo mas as impressões que
elas provocam num torcedor
que está longe de ser um xiita,
um fundamentalista em matéria
de futebol.
E a primeira dessas impressões
antecede à própria Copa. É uma
lembrança de Mário Filho, que
deu nome ao Maracanã e é considerado o patrono da nossa crônica esportiva. Dono do "Jornal
dos Sports", ele foi à Copa de 62
no Chile, quando o Brasil conquistou pela segunda vez a então Taça Jules Rimet.
No livro que publicou logo depois, ele tem uma deliciosa página sobre as comemorações da
conquista. Todos gritavam, choravam, Garrincha era levado em
triunfo, todos os brasileiros do
outro lado da Cordilheira dos
Andes invadiram o campo, a
zorra era geral. Mário Filho foi
um dos invasores e de repente,
teve uma desconfiança: todos
choravam, urravam, se abraçavam e comemoravam porque,
num exame profundo de consciência, descobriam que não
eram pés-frios, pelos menos os
muitos ali presentes não eram
pé-frios.
Não sei se ainda é assim, mas
naquele tempo havia a fama dos
pés-frios. Era letal. O sujeito podia ser bacana, querido por todos, ser um benemérito do esporte, ser um craque na imprensa esportiva, um cartola de sucesso. Mas se tinha a fama de
pé-frio -adeus! Era mais discriminado do que um negro-gay-aidético-tabagista-eleitor do Enéas.
A alegria pelo trunfo, pelo bicampeonato no Chile, era real,
imensa. Mas a euforia individual
que tomou a todos ("Eu não sou
pé-frio!") podia não ser maior
mas empatava com a alegria geral pela vitória.
Dito isto, direi mais: torcerei
pelo Brasil por vários motivos. O
mais importante será esse: para
não integrar a imensa, a execrável legião de pés-frios.
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