São Paulo, sexta-feira, 02 de abril de 2004

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FUTEBOL

O homem conservador

MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA

Carlos Alberto Parreira é um dos três melhores técnicos de futebol do Brasil e um dos melhores do mundo. Perde para Luiz Felipe Scolari e Wanderley Luxemburgo na cancha menor de quem não foi jogador.
Leva vantagem em horas de vôo, no saber do que vai pelo planeta e no empenho pelo estudo do seu ganha-pão. É o homem certo no lugar certo: o comando da seleção brasileira.
Os times de Scolari suam com garra de gaúcho lá de Passo Fundo. Os de Luxemburgo atacam na vertical com voracidade de chefe de departamento de recursos humanos. Os de Parreira, tão eficientes quanto os dos outros dois, são os que mais exaltam o futebol clássico nativo: desfilam na cadência do toque de bola. Na tática do cerca-lourenço, comem pelas beiradas, demoram mais a chegar ao gol, mas chegam.
Por que a seleção que se conteve num sepulcral 0 a 0 no Defensores del Chaco não chega?
Não penso que o entrosamento tênue seja a fonte dos nossos males. Com mais tempo para treinar, melhora-se. Verdade ululante. Treino, contudo, não resolve por si. Enquanto o meio-campo recusar a razão de viver desse setor, a ligação da defesa com o ataque, a equipe dependerá dos rasgos de talento dos atletas.
Hoje, é um time com cabeça e membros. Dida não dá chutão porque quer, mas porque lhe faltam opções. Quando um zagueiro arrisca lançamentos insensatos, não está apenas a expor suas chagas: não tem para quem passar.
Uma contradição ronda o time: embora Parreira incense o 4-4-2 com devoção de carola, o sistema tem sido o 4-3-3. Na disposição em voga, nem Kaká nem Ronaldinho posicionam-se mais atrás. Só de vez em quando. Não armam. Talvez nem devam. A bola não chega ao trio completado por Ronaldo. E somente um Napoleão de hospício sacaria um deles.
Parreira decerto diagnosticou o drama da equipe sem tronco. Mas até agora não deu jeito, pouco mudou. Constitui traço inarredável de sua alma a aversão à mudança. Quando ocorre, tem velocidade de bonde.
É bola fora carimbar Parreira como defensivista. Um retranqueiro não manteria três atacantes como agora na seleção e anteontem no Corinthians. Não penaria tanto com a desproteção da defesa num time que, mesmo despovoado no meio, tem o ataque como vocação atávica. A equipe tetra em 94 foi também campeã de passes certos e finalizações.
O conservadorismo de Parreira não prevalece na tática, e sim na resistência à novidade. Nos EUA, insistiu até quando pôde num Raí (mais ofensivo) longe do brilho habitual, antes de escalar Mazinho (mais defensivo). Porém suas convicções o fizeram bancar o desacreditado Branco, que decidiu contra a Holanda. E Zinho, que incorporou funções de bispo e cavalo nos xeques brasileiros.
A inapetência ofensiva, a suspensão de Gilberto e os amistosos antes do embate com a Argentina talvez façam Parreira trocar mais do que seis por meia dúzia. Os conservadores também mudam.

Sangue!
Faz quase 20 anos, foi no Maracanã cheio, foi numa noite talvez mais clara do que as memórias sombrias sugiram. As torcidas cariocas se uniram nas semifinais do Campeonato Brasileiro de 86 para apoiar o renascido América contra o São Paulo. Eu nunca gritara "sangue!", o célebre brado de guerra americano. Nunca mais voltaria a gritar. Poucas vezes gritaria tanto por um time. Não deu. Lembrei daquela noite dos diabos ao assistir ao comovente documentário da ESPN Brasil sobre o centenário do América, com roteiro de José Trajano e Helvídio Mattos. E ainda pude ouvir uma palhinha do americano Vicente Celestino a cantar "Noite cheia de estrelas". Era o tempo dos cantores com voz de macho. Valeu, sangue!

E-mail
mario.magalhaes@uol.com.br


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