São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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SURFE
Hexacampeão, que se afastou do Mundial nesta temporada, busca um novo estímulo para o seu "vício"
No auge, Slater desafiará megaondas

CARLOS SARLI
Colunista da Folha

PAULO LIMA
especial para a Folha

Você tem 27 anos, mais de US$ 10 milhões no banco, um romance com a atriz Pamela Anderson no currículo, é um atleta equiparado a Michael Jordan e Ronaldo, tem seis títulos mundiais de surfe, conhece mais de 20 países, ganha muito para viajar, pegar ondas, dar autógrafos para mulheres bonitas e participar de noitadas.
O que você faz?
Se a resposta for largar tudo isso para descobrir algum significado para sua existência, seu nome é Kelly Slater.

"Trip" - Você está sempre rodeado por mulheres querendo te agarrar, garotos querendo ver você surfar e ver suas pranchas. Como você lida com esse assédio permanente?
Kelly Slater -
É bom ser admirado, mas é difícil lidar com isso. Por exemplo, às vezes eu quero andar na praia no final do dia e é simplesmente impossível.

"Trip" - E você gostaria que isso mudasse?
Slater -
Gostaria de ter uma vida mais normal.

"Trip" - Como é sua família? Onde estão suas raízes, já que você vive viajando pelo mundo?
Slater -
Eu não tenho raízes. Nasci na Flórida (EUA) e tenho dois irmãos (Kelly é o do meio). Meus pais se divorciaram há 15 anos.

"Trip" - O que fazem seus irmãos?
Slater -
Os dois surfam, inclusive meu pai. O mais velho é shaper (projetista de pranchas), e o caçula surfa pelo mundo, sem endereço fixo nem telefone, dormindo na casa dos amigos.

"Trip" - Qual porcentagem do seu sucesso como atleta você acha que vem de um dom seu, e qual porcentagem acha que vem de muito trabalho?
Slater -
Acho que o biotipo do meu corpo, com uma parte de cima mais desenvolvida, somado aos instrutores certos, foi primordial para tudo dar certo.

"Trip" - Tom Curren (ex-campeão mundial de surfe e antigo guru de Slater) viveu durante algum tempo esse auge, mas hoje a vida dele está uma bagunça: vive isolado e está sem dinheiro. Você acha que isso também pode acontecer com você? Qual foi o erro de Curren?
Slater -
Curren é um péssimo administrador. Ganhou muitas coisas, mas não conseguiu mantê-las. Não sei se sou um bom homem de negócios, mas aprendi a lição com 20 anos e hoje tenho quem cuide de meu dinheiro.

"Trip" - Qual foi essa lição aos 20 anos?
Slater -
Quando eu tinha 20 anos, já havia ganho mais de US$ 1 milhão e, mesmo assim, ao final daquele ano, estava quebrado, devendo dinheiro. Venho de uma família simples e, quando comecei a ganhar dinheiro, comecei também a gastar, e gastei muito. Não planejei nada, só gastei.

"Trip" - Hoje, com 27 anos e seis vezes campeão do mundo, você já pensou em se expandir em outra direção e começar um outro projeto?
Slater -
Não. O surfe é minha paixão, e pretendo trabalhar só com coisas que amo. Pretendo continuar fazendo isso pelo resto de minha vida.

"Trip" - Cada vez mais os atletas de nível mundial, como você, estão preocupados com trabalhos sociais. Você tem alguma ação nesse sentido?
Slater -
Todo ano eu cedo uma bolsa de faculdade. Costumo falar sempre para as crianças nas escolas sobre drogas, esse tipo de coisa. Ajudo também a Surfrider Foundation. Faço o que posso.

"Trip" - Você tem uma filha pequena e nunca foi casado. Como foi isso? Era uma namorada?
Slater -
A garota não era minha namorada, foi apenas um caso. Quando ela engravidou, decidiu ter a criança e eu apoiei a decisão. Aliás, minha filha já está com três anos de idade.

"Trip" - Você disse há algum tempo que, depois de ser o campeão mundial mais jovem, gostaria de ser também o mais velho. Ainda é uma de suas metas?
Slater -
É sim. Mas do jeito que o Occy e o Damien estão surfando, eu posso ter problemas (os surfistas australianos Mark Occhilupo e Damien Hardman, ambos de 33 anos, continuam competindo e atualmente estão em primeiro e quarto lugares no ranking do circuito mundial).

"Trip" - Você acha que um surfista pode ficar melhor com o passar dos anos?
Slater -
Tenho certeza disso. Tom Carroll e Tom Curren surfam melhor hoje do que quando foram campeões mundiais.

"Trip" - Qual sua prioridade no surfe, já que você abandonou o circuito neste ano?
Slater -
As ondas grandes. Quero focar no surfe de ondas grandes, coisa que não faço há anos.

"Trip" - Essa parada é temporária? Você volta ao circuito no ano que vem?
Slater -
Acho que não. Tenho muita coisa para pensar e quero organizar a minha vida.

"Trip" - Como foi seu relacionamento com uma das mulheres mais desejadas do mundo, Pamela Anderson?
Slater -
Nos encontramos pela primeira vez em 92, em um set de gravações do Baywatch (seriado da TV norte-americana). A princípio, não me senti atraído por ela. Nós dois estávamos comprometidos e, para dizer a verdade, não achava ela tudo isso. Acho que ela olhava pra mim e dizia: "Quem é aquele surfista vagabundo?" Depois de um ano, encontrei-a no Havaí. Ela estava gravando nas areias de Pipeline e, quando apareci, simplesmente largou tudo e foi me abraçar. Do nada, se declarou apaixonada por mim.

"Trip" - Você viu o vídeo da Pamela com o marido dela (gravação de relações sexuais entre a atriz e Tommy Lee Jones, amplamente divulgado pelo mundo, inclusive na Internet)?
Slater -
Assisti, mas não consegui chegar ao final. Não vi nenhuma boa tomada (risos).

"Trip" - Você gosta de ler?
Slater -
Bastante.

"Trip" - O que tem lido?
Slater -
Tenho lido muitos livros de autoconhecimento.

"Trip" - E o que você tira de proveito deles?
Slater -
Que o mais fácil para as pessoas é trabalhar, ir para o bar e arranjar uma transa, por exemplo. Mas há algo que está faltando em suas vidas. Isso aconteceu comigo no surfe. Talvez por causa da separação dos meus pais, cresci duvidando dos relacionamentos e mergulhei com tudo no surfe. O surfe foi, durante muito tempo, um vício para mim, assim como as drogas e o álcool são para outras pessoas. A diferença é que eu tinha consciência disso.

"Trip" - Isso seria um dos motivos que o levaram a abandonar o circuito mundial neste ano?
Slater -
É o principal motivo.

"Trip" - Quais foram as ondas que mais te marcaram na vida?
Slater -
Quando tinha 19 anos, peguei uma em Pipeline, durante um campeonato, que me marcou bastante. Há dois anos, surfei uma onda em G-Land (Indonésia) que também foi especial.

"Trip" - Qual a sua opinião sobre o tow-in (prática em ondas enormes na qual o surfista é puxado por um jet ski em vez de remar por conta própria)?
Slater -
É OK, diferente, sei lá. Já experimentei o tow-in, mas não é algo que me conquistou. Sou de uma geração que não curte muito o jet ski. As maiores ondas que já surfei, eu remei para pegá-las. Quero continuar remando para surfar ondas grandes.

"Trip" - Qual seu patrimônio?
Slater -
Dirijo uma Mercedes, que adoro, e tenho uma casa na Flórida e outra na Austrália. Mas descobri que quanto mais coisas tenho, mais bagunçada fica a minha vida.

"Trip" - Até bem pouco tempo, você era o novo talento que veio para desbancar os surfistas mais velhos. Hoje, já existem novos garotos, novos talentos. Como você encara isso?
Slater -
Não me preocupo com isso. Tenho confiança no meu surfe. Eu passo por cima deles.

"Trip" - Muita gente chegou a comentar que você, na época em que estava vencendo todas as competições, chegava a se sentir solitário e entediado por ser sempre o melhor. Isso é verdade?
Slater -
É. Teve um ano em que ganhei sete etapas de treze. Pra dizer a verdade, eu sempre quis que aparecesse alguém que competisse o circuito mano a mano comigo, alguém para disputar cada etapa, cada onda.

"Trip" - Pode-se dizer que você passou a competir contra você mesmo?
Slater -
Pode-se dizer que sim.

"Trip" - Qual a sua opinião sobre o atual formato de competição da ASP (Associação de Surfe Profissional)?
Slater -
Vejo vários erros básicos. Um deles é que a associação não é dona dos eventos, depende dos patrocinadores e de seus logotipos. Outra falha é o tempo reduzido que o surfista passa no mar. É muita bateria, mas nem todo mundo surfa contra todos.

"Trip" - Você já pensou em algum formato opcional?
Slater -
Já. Eu até cheguei a esboçar um novo formato, no qual todos surfam contra todos e o tempo real de baterias é o mesmo. Mandei para a ASP e nunca recebi um retorno.

"Trip" - Para onde você acha que está caminhando a evolução do surfe?
Slater -
É preciso estudar o surfe, os equipamentos. Como qualquer outra coisa, precisamos de especialistas do surfe.

"Trip" - Você acha que é possível ensinar o surfe como um esporte convencional?
Slater -
Claro. O surfe é um esporte rebelde, solitário, mas que pode ser ensinado. Acho que o surfe ainda não é bem compreendido pelas pessoas.

"Trip" - Na sua opinião, quem é o atleta do século?
Slater -
Pelé.

"Trip" - Você segue alguma dieta especial?
Slater -
Recentemente, vi uma entrevista do Rickson Gracie (lutador de jiu-jitsu) na qual ele falava muito sobre combinação de diferentes tipos de alimentos. Comprei um livro sobre o assunto e passei a estudar um pouco. Nos últimos meses, tenho comido muito abacate, peixe e camarão. Mas não é nada muito sério.

"Trip" - Além de surfar, você vem fazendo algum tipo de preparação especial?
Slater -
Faço e recomendo a ioga, tanto para o corpo quanto para a mente de qualquer pessoa. Costuma-se dizer que um músculo rijo é um bom músculo. Eu não acredito nisso. É preciso espaço para esse músculo trabalhar. Outro dia, vi na televisão que os cubanos só exercitam as juntas, e não os músculos. Na minha opinião, isso faz mais sentido.

"Trip" - O que acha das pessoas que passam a maior parte do tempo tratando do corpo?
Slater -
Elas não devem estar muito legal por dentro, e aí tentam ficar legal por fora trabalhando os músculos. Eu não devia estar julgando, mas talvez o julgamento faça algum bem para elas.

"Trip" - Quantos países você já visitou?
Slater -
Acho que pelo menos uns 20.

"Trip" - Você já ganhou tudo o que podia como surfista. Qual seu objetivo para o futuro?
Slater -
Quero achar uma garota bacana, ter filhos, levar uma vida normal. Como já disse, a vida aqui é um sonho e não vai durar.

"Trip" - Na sua opinião, qual o melhor surfista brasileiro?
Slater -
Fábio Gouveia. Ele tem o estilo mais bonito, se joga, completa boas manobras.

"Trip" - E entre os big riders, qual o melhor brasileiro?
Slater -
Carlos Burle.

"Trip" - Você não acha que o Carlos Burle deveria estar na lista de convidados do Eddie Aikau (campeonato de ondas gigantes realizado no Havaí apenas para convidados)?
Slater -
Sem dúvida. Não sei o que acontece nesse processo, acho que perguntam para os lobistas havaianos.

"Trip" - Você já ouviu falar da "Big Trip"?
Slater -
A promoção da maior onda para os brasileiros, não é? Sim, ouvi falar. Quem ganhou?

"Trip" - Rodrigo Rezende, surfando uma onda na manhã do Eddie Aikau. Calculamos que tinha 27 pés. O que você acha (mostrando a foto)?
Slater -
Acho que essa onda tem mais de 27 pés (8,2 metros).




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