São Paulo, sexta-feira, 06 de agosto de 2004

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FUTEBOL

O dia em que o jogo foi censurado

MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA

Rememoram-se por esses dias o atentado da rua Tonelero e a tragédia de Getúlio. Naquela mesma quadra, meio século atrás, o jovem Nelson Pereira dos Santos filmava a obra que mudaria para sempre o cinema brasileiro e daria ao futebol um dos mais belos registros na tela: "Rio, 40 graus".
O Maracanã estava cheio. De verdade, não com as 80 mil pessoas que agora o lotam. O clube de massa barrou o veterano Daniel, ídolo da torcida. Sua saída não foi decisão do técnico Mário, mas de um cartola de bigodinho. Entrou o garoto Foguinho.
No primeiro tempo, nada de o substituto engrenar. Gol do adversário. Um pessoal do morro do Cabuçu, sem dinheiro para o ingresso, acompanhou pelo rádio do boteco. No estádio com menos de cinco anos de vida, a torcia pedia por Daniel, que a tudo assistia de calça e camisa social.
No intervalo, o cartola cobrou do treinador o desempenho do novato. "Eu não queria escalar o garoto. Foi o senhor que insistiu", respondeu Mário. O dirigente deu aula sobre jornalismo: "A imprensa já está conversada. Fará dele [Foguinho] um herói, salvador da pátria".
Foguinho foi recuado e passou a ponta-de-lança. Antes que deixasse o vestiário, alcançou-o o "acabado" Daniel. Em vez de desabafo, ouviu-se solidariedade.
Daniel: "Você precisa dar o couro pra se defender. Defender sua profissão e o seu estômago. (...) Pense na torcida que tá te esperando. Jogue por você e por ela. Ela merece respeito e sabe recompensar o jogador honesto".
"Eu não sei por que me escalaram no seu lugar", murmurou o boleiro acuado. Daniel encerrou: "Isso são outros 500 cruzeiros. Talvez porque já esteja velho. Mas há de chegar o dia em que deixaremos de ser mercadoria".
O cartola comentou na tribuna que não liberaria Daniel. Até o fim da carreira, ficaria preso ao clube. O apito trilou, Foguinho marcou dois, virou e levou à vitória. O cartola contou vantagem.
Às vésperas da estréia, em 1955, a fita recebeu cartão vermelho. O chefe de Polícia do então Distrito Federal, um coronel lacerdista, proibiu a exibição. Não faltavam motivos, dizia. O palavreado era vulgar, o cineasta só mostrava miséria, e 40 graus só podiam ser ficção: no Rio, não fazia. Tudo por causa do dito subversivo Nelson, militante do clandestino Partido Comunista do Brasil. Depois do governo-tampão de Café Filho, liberou geral.
Para um país que se habituara a chanchadas, foram um assombro as várias histórias ficcionais (a do Maracanã é uma delas) pontuadas pelas andanças de meninos que vendiam amendoim.
Influenciado pelo neo-realismo italiano, o filme flerta com o realismo socialista em momentos essenciais: quando dois fortões, ao se reconhecerem velhos companheiros de greve, não consumam a briga pela mulata; e quando uma certa consciência de classe se impõe, e o jogador barrado incentiva o sucessor. Mesmo assim, é bacana, um gol estético e futebolístico que ainda dá gosto de ver.

O "Medalhão"
Duas revelações da semana, ambas do colunista Juca Kfouri no diário "Lance!", ajudam a entender a gestão do Ministério do Esporte. Ao ministro Agnelo Queiroz, não bastou vestir a camisa amarelinha e subir no palanque na Copa América. Ele voltou com uma medalha. Ganhou, dos jogadores, o apelido de "Medalhão". Outra informação, documentada: ao contrário do que propagava, o ministro operou contra dois artigos do Estatuto do Torcedor: o sorteio de árbitros (norma exaltada pelo PC do B, partido de Agnelo, em julho de 2003) e a responsabilidade dos organizadores das competições por prejuízos a torcedores. Ofícios assinados pelo novo amigo da cartolagem mostram por quais interesses e por quem ele agiu.

E-mail
mario.magalhaes@uol.com.br


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