São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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A espionagem

Reprodução
Ao lado de Juscelino Kubitschek (1956-1961), Pelé acena para o público após o título de 58



Pelé foi vigiado pelo governo militar, que temia ver a imagem do jogador utilizada por militantes de esquerda, contrários ao regime


Em 1965, no ano seguinte à tomada do poder pelos militares, em 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart (1961-1964), o governo passou a investigar de perto tanto Havelange quanto Pelé.
O primeiro, porque pretendia ser presidente da Fifa já em 1970, apostando no sucesso da seleção na Copa da Inglaterra, em 1966. O segundo, pelo temor de que a imagem do jogador pudesse ser usada, em algum momento, por militantes de esquerda.
Em um dos documentos que foram mantidos pelos militares e ao qual a Folha teve acesso agora, o temor do governo é explícito. Como Pelé era descrito como uma pessoa ""apolítica", havia o receio de que ele pudesse ser usado pelos ""guerrilheiros empenhados na Contra-Revolução".
Ainda em 1965, Havelange pediu ao governo recursos que, segundo o almirante Adalberto Nunes, que depois integraria o governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), acabariam sendo desviados de programas sociais, para que o Brasil se preparasse melhor para a Copa de 1966 e Havelange, para sua campanha rumo à Fifa.
Uma fatia dos recursos foi usada na realização da Taça das Nações, torneio internacional que, em 1964, comemorou os 50 anos da CBD.
O torneio, com participação de Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra, estava marcado antes de os militares tomarem o poder.
Mas, desde então, os gastos da CBD passaram a chamar atenção. O almirante Nunes era quem mais se opunha aos ""desperdícios" da entidade.
E, a partir da investigação de sua contabilidade, os militares constatariam uma primeira doação da CBD a Pelé, em 1965, de aproximadamente R$ 9.100, considerando-se valores de hoje.
A justificativa da entidade foi ter dado quantia semelhante -R$ 8.300- a Garrincha, quitando uma dívida do atacante com o Imposto de Renda.
No entanto, outros jogadores, caso de Zagallo, que quatro anos mais tarde assumiria o comando da seleção brasileira, não tiveram a mesma regalia.
Em 1969, os militares apontaram que Havelange voltou a ajudar Pelé, assumindo uma dívida do então jogador com o Banco do Brasil no valor de R$ 189 mil.
A partir de 1970, depois do tricampeonato obtido pelo Brasil na Copa do México, e apesar da decisão de Pelé de deixar a seleção, negando-se a jogar o torneio Independência, em 1972, e a Copa do Mundo da Alemanha, em 1974, suas relações com o dirigente não foram afetadas.
Ao contrário do que mais tarde seria divulgado tanto por partidários de Havelange quanto do ex-jogador, o material do regime militar indica que não só não houve rompimento entre os dois, como o relacionamento deles se intensificou nos anos 70.
Uma prova disso foi o auxílio dado ao então jogador quando a Receita Federal decidiu investigar seus ganhos com publicidade.
Em 1970, quando conquistou o tricampeonato mundial pelo Brasil, ele declarava que seus rendimentos estavam na casa dos R$ 35 mil por mês, valores de hoje.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas feito na época, no entanto, ao qual a reportagem da Folha teve acesso, indica que Pelé, especialmente devido a seus contratos publicitários, ganhava pelo menos 350% a mais do que o declarado ao governo.
Ciente do material, a Receita passou a investigar os vencimentos do atleta no setor publicitário e acabou autuando-o em 1972.
Pelé teria, então, de desembolsar o que equivale hoje a R$ 442.468 em impostos devidos, mas não pagos até aquele ano, e multas. Irritado com a situação, pediu ajuda ao Santos e à CBD.
Havelange acabou lhe ""doando", em troca do auxílio a sua campanha à presidência da Fifa, mais de 30% do valor, conforme indica material colhido pelo então deputado Maurício Toledo.
Pertencendo à Arena, partido do governo, Toledo pediu em 1973, na Câmara dos Deputados, que fosse nomeada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar os gastos da CBD e as doações a Pelé e outros jogadores e dirigentes envolvidos na campanha de Havelange à presidência da Fifa.
Para fazer o pagamento à Receita, Pelé reclamou muito. Desembolsou, parceladamente, R$ 200 mil (em valores de hoje) e o restante ficou por conta do Santos e da CBD, que arcaram, juntos, com mais de 55% do total devido.
Além da contabilidade de Pelé, os movimentos do atleta também eram seguidos de perto pelos agentes do governo militar.
Os ""espiões" fizeram extensos relatos sobre suas atividades durante as excursões para o exterior. Em 31 de março de 1971, por exemplo, quando de um amistoso do Santos contra um combinado de Saint-Étienne e Marselha, o comportamento dos atletas brasileiros foi alvo de críticas.
Os jogadores, entre os quais o próprio Pelé, são acusados de sair à noite sem autorização, de voltar de madrugada ao hotel e de entrar em contato com brasileiros exilados na França.
O relatório diz que Havelange ""nada fez contra as aberrações que aconteciam, só se preocupando em fazer média com as autoridades locais, úteis não ao Brasil, mas a seus interesses pessoais, única e exclusivamente".
Mais tarde, no governo chefiado por Ernesto Geisel (1974-1979), quando Pelé estava para se transferir para o time do Cosmos, de Nova York (EUA), discutia-se se valia a pena abrir processo contra ele e Havelange.
Os motivos eram a suspeita de que o dirigente desviara fundos da entidade para sua campanha -e que o vinha fazendo desde os anos 60- e de que o jogador recebera, em empréstimos e doações da CBD, entre 1965 e 1973, cerca de US$ 320 mil atuais.
De acordo com um relatório preparado a mando do almirante Nunes, que chegou às mãos de Geisel em janeiro de 1975, o rombo na CBD durante a administração Havelange estava na casa dos US$ 18,5 milhões, considerando-se valores de hoje.
Só em 1974, ano das eleições na Fifa, ele chegava a US$ 1,5 milhão, equivalentes a quase US$ 5 milhões atuais.
Com isso -e irado pelo fato de, exatamente no dia das eleições na Fifa, em Frankfurt, Havelange ter contrariado determinação dos militares e defendido a entrada da China, que não tinha relações diplomáticas com o Brasil, na entidade- Nunes mostrou-se favorável à tese da abertura de processo contra Havelange.
Mas Geisel foi contra. Ele citou inclusive uma reunião ao almirante, realizada em 4 de junho de 1966, da qual participaram Golbery do Couto e Silva, Mem de Sá, Pedro Aleixo e Octávio Bulhões, todos ligados ao regime militar e convocados pelo então presidente Castello Branco, e em que dois assuntos foram discutidos.
O primeiro versava sobre Adhemar de Barros, governador de São Paulo, envolvido em escândalo financeiro. O segundo, sobre Havelange e Pelé, quando foi discutida a importância que a possível conquista da Copa de 1966 poderia ter para o governo brasileiro.
Nove anos depois, a situação não era muito diferente. Se alguma coisa mudara, teria sido o fortalecimento dos dois no cenário mundial.
Com receio de que as investigações afetassem mais a imagem do governo do que a do dirigente e a de Pelé, usado pelo regime militar para ""vender" o Brasil para o exterior, o presidente optou por uma solução intermediária e decidiu cobrir o déficit da CBD.
Assim sendo, em 7 de março de 1975 foram depositados cerca de US$ 4,4 milhões (valores da época) na conta da entidade, e Geisel pediu, do próprio punho, que a Caixa Econômica Federal debitasse a quantia do Fundo de Assistência Social.
Para acalmar a ira do almirante, o presidente decidiu ainda pelo afastamento de Havelange da CBD, bem como pela nomeação de Heleno Nunes, também almirante e irmão de Adalberto, para comandar a entidade.
Os problemas com os militares, tanto de Havelange quanto de Pelé, só seriam superados em 1979, quando o general João Baptista Figueiredo, muito amigo do dirigente, assumiu a presidência.
Após pedido de Figueiredo ao ministro Golbery do Couto e Silva, foi providenciado o desaparecimento de quatro pastas sobre Havelange e Pelé, que se encontravam no Dops (Departamento de Ordem Pública e Social), espécie de polícia política do regime.
Golbery entrou em contato com a 1ª Região Militar do Ministério, responsável pelo sumiço do material, hoje em posse de um ex-ministro, que poderia comprometer os dois no tocante ao rombo nas contas da confederação.
Pela segunda vez em sua vida, o jogador via os militares em seu encalço. A primeira fora em 1959, quando teve de fazer o serviço militar depois de voltar campeão do mundo da Suécia.
Pelé apelou ao deputado Athiê Jorge Cury, então presidente do Santos, na tentativa de se livrar do Exército. ""Mas o que eles poderiam alegar? Que eu não tinha condições físicas? Você acha que alguém ia acreditar?", perguntou, em tom de brincadeira, depois de ter servido o Exército.
Em 1959, atuando não só pelo Santos e pela seleção brasileira, mas também pela das Forças Armadas, jogou 103 vezes, recorde em sua carreira.
Em dez ocasiões, entrou em campo num espaço menor do que 24 horas entre um jogo e outro. Em cinco delas, o intervalo foi inferior a 18 horas.
Recruta 209, Pelé conta que o período passado no Exército não foi dos mais fáceis, especialmente por prendê-lo muito à noite e aumentar o risco de contusão.
Apesar de ter sido poupado de vários treinamentos físicos, a fim de evitar sobrecarga, ele se machucou duas vezes na temporada.
""Treinava tanto que chegava a me prejudicar", relatou. ""E quando não nos saíamos bem, perdíamos a folga e tínhamos que ficar presos no quartel."


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