São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2004

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Fênix olímpica

Das ruínas pós-guerra, iraquianos superam adversidades e mantêm vivo sonho de ir a Atenas

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

As janelas estilhaçadas são a única fonte de ar fresco nos dias de calor. Não há ventiladores, chuveiros, bebedouros. No teto, três pares de lâmpadas iluminam o ambiente, mas a eletricidade falha quase diariamente.
Nessa acanhada saleta, localizada na parte leste de Bagdá, treinam os melhores atletas iraquianos de levantamento de peso. Ninguém reclama. Não há tempo.
Nos próximos meses, os competidores tentarão cumprir uma missão crucial para seu país: obter vagas na Olimpíada de Atenas, programada para agosto.
"Eles estão empolgados com a possibilidade de disputar torneios classificatórios para os Jogos. Esperamos por isso há muito tempo. É uma prioridade nacional", conta Mustafa Saraj, que vive na capital e é membro do comitê interino que administra o esporte.
O engenheiro foi um dos dirigentes que descreveram à Folha a situação local e de outros países assolados por grandes conflitos.
Estruturalmente, o cenário é pouco animador. De acordo com a Autoridade Provisória da Coalizão, que rege o país após a queda do ex-ditador Saddam Hussein, o Iraque tem hoje cerca de 200 instalações esportivas, entre campos, quadras e academias. "Quase tudo está destruído ou em estado bastante precário", lembra Saraj.
Mísseis e bombas lançados por ingleses e americanos durante a guerra, bem como os atentados e a guerrilha que se sucederam após a ocupação, não são os únicos responsáveis pelo estrago.
Segundo especialistas, o esporte local está arrefecendo desde que Uday Hussein, filho do ex-ditador, assumiu o comando do comitê olímpico, em 1984. "O país ficou desatualizado. Provamos com documentos que Uday realmente torturava atletas", diz Muttaleb Ahmad, diretor do Conselho Olímpico da Ásia.
Sua tese encontra respaldo na história. Em Londres-1948, o Iraque debutou em Olimpíadas. A primeira e única medalha foi angariada somente 12 anos depois, nos Jogos de Roma -Abdul Wahid Aziz conquistou o bronze no levantamento de peso.
Para Moscou-1980, os iraquianos enviaram sua mais abrangente delegação: 44 competidores. Daí em diante o número foi decaindo até os quatro representantes que marcharam no estádio olímpico de Sydney, em 2000.

Novos rumos
Com a ajuda do Comitê Olímpico Internacional, o projeto é repetir esse número em Atenas. Mesmo com critérios técnicos mais rígidos para evitar o inchaço dos Jogos, a entidade prometeu quatro vagas ao Iraque -duas no atletismo e duas na natação.
"É uma questão de identidade. Participar da Olimpíada vai trazer de volta o orgulho do iraquiano. Isso é essencial", conta Ahmad.
Nas pistas, os "wild cards", como os convites do COI são chamados, devem beneficiar a galhardia de Ali Hamdan Hashim. Em dezembro, ele se tornou o primeiro iraquiano a competir nos EUA após a guerra -disputou a Maratona da Califórnia.
A história que vem das piscinas é ainda mais emblemática. Sarmad Mohamad, Zaid Saeed e Mohammed Abbas receberam, em julho do ano passado, uma convocação da Federação Internacional de Natação para a disputa do Mundial de Barcelona, em agosto.
Aceitaram imediatamente e aproveitaram os holofotes para fazer uma denúncia. Desde abril, estavam treinando no rio Tigre. Motivo: os soldados da coalizão haviam tomado a única piscina olímpica (50 m) de Bagdá.
"Eles querem destruir tudo. Não nos sobra nada", protestou Saeed, um dos que devem chegar à Atenas via "wild-card".
Para as forças de coalizão, não houve má-fé ou sortilégio. A piscina foi interditada, segundo a Autoridade Provisória, porque a água estava contaminada.
Coincidência ou não, os iraquianos puderam voltar a usar o local quando retornaram do evento na cidade catalã.

Mais vagas
Os quatro lugares oferecidos pelo COI não parecem suficientes. Mesmo sem convites, outras modalidades ainda tentam incrementar a delegação iraquiana.
Atletas que praticam levantamento de peso, boxe e tae-kwon-do seguem treinando nas pífias condições da capital para disputar, a partir deste mês, os torneios pré-olímpicos, que vão até maio.
Enfrentarão adversários preparados e bem treinados, não terão a complacência de ninguém, mas, ainda assim, sonham em desfilar sob o preto, verde, vermelho e branco da bandeira iraquiana.
Só que, com tantas limitações, eles não devem repetir na Grécia a cena que emocionou os membros do COI na última visita que fizeram ao país, em maio.
De acordo com o relato de Ahmad, a comitiva interrompeu a peregrinação na biblioteca da Universidade de Bagdá.
Lá, pregadas na parede, uma flâmula da Olimpíada de Moscou e uma foto da delegação iraquiana no desfile de abertura trouxeram muitas lembranças à tona. "É aquela vibração esportiva que queremos de volta", diz Ahmad.


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