São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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FUTEBOL
Prédio comprado pelo volante corintiano começou com Greta Garbo e piano e terminou com nudez e gemidos
"Cine-Vampeta' viu orquestra e sexo

do enviado a Nazaré (BA)

Em seus 71 anos de existência, o Rio Branco, tal qual o cinema retratado no filme de Tornatore, guarda um mundo de histórias.
Desde a noite de 11 de dezembro de 1927, quando foi exibida a película "Uma noite de amor", estrelada por Greta Garbo e John Gilbert, até o último fechamento, em 1996,o espaço adquirido por Vampeta experimentou a glória e o empobrecimento, processo por que passam (ou passaram) inevitavelmente os cinemas do interior.
Por sua tela ou palco desfilaram filmes e shows que repassam a história cultural do país neste século.
No princípio era o cinema mudo, sonorizado por um piano e uma orquestra.
"Os músicos começavam a tocar na praça e iam caminhando pela cidade, até entrarem no cinema", conta a ex-proprietária Norma Soares.
Certa vez, recorda, um sanfoneiro foi chamado para sonorizar um filme que contava a vida de Cristo.
"Meu pai explicou que era pra ele tocar as músicas de acordo com as cenas, e ele foi tocando, de improviso. Estava indo bem, até que, na cena em que Jesus era crucificado, ele tocou uma música cujo refrão era "O tatu subiu no pau'. O povo danou-se, deu-lhe uma surra e arrebentou a sanfona, ele saiu correndo do cinema."
Contemporâneo do Rio Branco, o aposentado Carlito Serafim dos Anjos, 79, empolga-se ao relembrar dos tempos áureos do cinema.
"Antigamente só se entrava de paletó e gravata, e as madames e senhoritas exibiam seus melhores vestidos. Para conseguir ingresso nas frisas para o domingo, tínhamos que comprar na quinta-feira."
Carlito fala como uma criança de Oscarito em "Esse Mundo é um Pandeiro" e de "Tom Mix e Buck Jones nos caubóis", a grande atração de seu tempo.
"Gostava muito de ver os filmes do Gionvani", conta.
Citado por outros moradores como um dos atores de maior sucesso no Rio Branco, o "Gionvani" em questão nada mais era -só mais tarde a reportagem esclareceria- que uma corruptela do ator norte-americano John Wayne.
O prestígio do gênero "western" era tanto que foi imortalizado na logomarca do Rio Branco.
O formato das letras, mantido até hoje (veja foto acima), é inspirado na tipologia usada nas fachadas dos "saloons" americanos.
Mais tarde, quando os espetáculos de luta livre eram moda, um lutador visitante saiu fugido da cidade por cegar o campeão local durante um combate.
Lutavam uma noite o nazareno Tito e o visitante King Kong, vindo de Salvador. Em certo momento, King Kong acertou um chute no rosto de Tito, nocauteando-o.
Em 92, quando dava seus últimos suspiros, o cinema chegou a abrigar uma minitemporada de uma peça de sexo explícito de uma companhia paulista que excursionava pela Bahia.
Em cima de uma picape do dono do cinema, as atrizes dançavam e acenavam pelas ruas da cidade anunciando o espetáculo.
A propaganda não surtiu efeito.
"Foi um fiasco, tivemos 50 pessoas por noite", recorda o ex-proprietário Jorge Nagib Boeri Jr..
Nessa época, o Rio Branco já não tinha o glamour das primeiras décadas: suas pinturas estavam desbotadas, as cadeiras quebradas, os ornamentos despedaçados.
Construído sob influência tardia do "art nouveau" (estilo decorativo que vigorou entre 1895 e 1915), o cinema tem uma galeria superior em forma de ferradura, onde se localizam as frisas.
As 670 cadeiras são de madeira, e há desenhos por todo o prédio (veja detalhes nesta página).
Apesar de tanta riqueza, até agora nenhum restaurador participou da reforma, comandada pelo mestre-de-obras Silvério Rocha.
O Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia) ficou de mandar um restaurador à cidade, mas ainda não o fez.
Quanto às outras modificações, vão sendo feitas do jeito que dá.
Na reforma do telhado, Rocha e seus homens tiveram que elevar as vigas de madeira nas costas.
As cadeiras quebradas, originalmente de vinhático, estão sendo repostas por outras, de jequitibá. "Não tinha vinhático na carpintaria", conta Rocha.
No últimos anos, comentava-se na cidade que o Rio Branco seria o cinema mais antigo em funcionamento no Brasil.
A informação não procede, segundo o curador de documentação e pesquisa da cinemateca do MAM do Rio e autor da pesquisa do livro "Palácios e Poeiras - 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro", Hernani Heffner.
Só na cidade do Rio, afirma Heffner, há três cinemas mais antigos: o Íris (de 1909, mas que sofreu reforma em 1921), o Copacabana (de 1916, que já mudou a fachada três vezes) e o Odeon (de 1926).
O cinema mais antigo em atividade seria o Olímpia, em Belém, de 1912, originário da "borracha-époque" paraense (trocadilho alusivo à riqueza do ciclo da borracha no Norte). (FÁBIO VICTOR)



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