São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 2002

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TURISTAS OCIDENTAIS

Em Daegu, gol da Coréia transforma protestos em festa

Chuva, sol e ressentimento

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL

ROBERTO DIAS
ENVIADO ESPECIAL A DAEGU

Centenas de milhares de torcedores sul-coreanos transformaram ontem a comemoração do gol de empate do seu time com a seleção norte-americana num protesto contra um episódio esportivo do começo do ano.
No estádio Daegu, o autor do gol, Ahn Jung-hwan, festejou com seus companheiros imitando o movimento de um patinador.
Em Seul, onde cerca de 300 mil pessoas assistiram à partida em telões no centro da cidade, conforme a polícia, o movimento foi imitado pelos torcedores.
A coreografia foi uma referência a um fato que irritou profundamente os sul-coreanos: a desclassificação de Kim Dong-sung na prova dos 1.500 metros da patinação de velocidade nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Salt Lake City, nos EUA, em fevereiro.
Kim terminou à frente do norte-americano Apolo Anton Ohno, mas foi desclassificado porque um juiz australiano considerou que o fundista asiático bloqueou a passagem do adversário.
"Não sei o que era aquilo", afirmou o treinador dos EUA, Bruce Arena, sobre o gesto feito pelos jogadores do time oponente.
Vestindo camisa vermelha, em Seul, o escritor de livros budistas Jean Hyun-jong, 36, disse: ""Nós nunca esqueceremos o que aconteceu em Salt Lake City".
A partida foi em Daegu, 297 km a sudeste de Seul. Mas só no centro da capital se juntaram cinco públicos do estádio (60.778).
A euforia com a seleção produziu um dos fenômenos da Copa do Mundo. O que ocorre em dez diferentes locais de Seul e em outros municípios não é a reunião corriqueira em bares, restaurantes ou mesmo audiências amplas diante de telões que se conhece no Brasil. É algo muito maior.
Ontem, a partida começou às 15h30 (horário local). Em todo o país, as escolas liberaram os estudantes e as empresas, os funcionários. A repercussão é mundial. Pelo menos duas equipes da CNN cobriram o evento em Seul. A CCTV, da China, o relatou.
Como nos estádios, é a torcida organizada Diabos Vermelhos -ou Red Devils- que puxa palavras de ordem e cânticos. Na Coréia do Sul, a grande ""uniformizada" não é de clube, mas da seleção. Numerosas pessoas disseram que não viajaram a Daegu porque não havia ingressos sobrando.
Mais de 5.000 lugares, contudo, ficaram vazios. Isso que desde a véspera centenas de torcedores formaram uma fila, na qual dormiram em barracas de camping, para comprar uma entrada.
Embora a comemoração do gol que selou o 1 a 1 tenha atiçado os torcedores, não ocorreram os problemas que o governo coreano temia: manifestações massivas de repúdio aos EUA, seu aliado político, econômico e militar.
Nos dias que antecederam a partida, centenas de estudantes pediram em Daegu a retirada dos cerca de 37 mil militares norte-americanos que estão estacionados na Coréia do Sul.
No estádio, houve um esquema especial, que reuniu 7.000 agentes. Por motivos de segurança, o presidente sul-coreano, Kim Dae-jung, não compareceu.
Em Seul, 3.000 policiais cuidaram exclusivamente da proteção da Embaixada dos EUA, a 500 metros da maior concentração de torcedores, na área chamada Gwanghwamun. Temendo problemas, a representação diplomática ficou fechada.
Apareceu um único manifestante, carregando cartazes na frente e nas costas afirmando que os EUA não são um país amigo.
Como inexistiram atos que fossem significativos, toda a tropa ficou como os soldados do romance (de Dino Buzzati) e do filme (de Valerio Zurlini) "O Deserto dos Tártaros": esperando um inimigo que nunca chega.
O locutor que animou a platéia em Gwanghwamun apelou para que não houvesse protestos contra os EUA. Dias antes, o presidente da República pediu a mesma coisa.
Quase não se viram camisas da seleção dos EUA em Seul, onde norte-americanos têm escrito para jornais de língua inglesa reclamando da ""expansão do sentimento antiamericano".
No estádio havia mais torcedores, que foram sufocados pelos sul-coreanos, como previsto. Apesar da rivalidade, ambas as torcidas se divertiram juntas com um show de heavy metal num parque ao lado. Um espectador vestido de Elvis Presley agitou os vizinhos.
Ao contrário do que ocorreu na vitória da Coréia contra a Polônia, choveu torrencialmente em Seul. No estádio de Daegu fez sol na maior parte do tempo.
O comportamento dos torcedores é curioso. Os gritos em falsete, como fãs de ídolos de rock, não são dados apenas por garotas, mas também por rapazes.
Os berros mais histéricos ocorrem quando o treinador do time coreano, o holandês Guus Hiddink, 49, aparece no telão. As pessoas ficam nas ruas até limpar o lixo jogado pela multidão.
Muitas mulheres passam o tempo tapando a boca. O motivo principal é óbvio: nervosismo. Outro é a tradição: aquelas que mostram as gengivas -por exemplo, ao rir- ainda são em certos meios consideradas "fáceis, oferecidas".
"Infelizmente aqui ainda é assim", afirmou a secretária Kim Hjo-sung, 30.
Depois de ver jogo num telão, ela fez num café o que cada vez mais mulheres fazem, mas ainda em número reduzido: fumou em público, atitude até pouco tempo atrás restrita aos homens.


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