São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

No Japão, a festa só começa quando o jogo termina

MUDANÇA DE ARES

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A TÓQUIO

A vontade é de se fazer de louco, correr atrás do piloto do Boeing-747 da Korean Air que comandou o vôo 703 desde Incheon e perguntar: tem certeza de que parou na cidade certa? No país certo?
O município é Narita, onde fica o maior aeroporto internacional do Japão, a 60 km de Tóquio. Mas a chegada na tarde de ontem sugere tudo, menos que se aterrissou num dos dois países que hospedam a 17ª Copa do Mundo.
No aeroporto de Incheon, nos arredores de Seul, basta o passageiro espichar o rosto para fora do avião que tem início uma overdose de propaganda. Parece saguão de estádio. Em Narita é possível sair da área de desembarque sem nem ter visto um adesivo do torneio. Do lado de fora, um quiosque com capacidade para um único recepcionista exibe o logotipo da Copa. É de um patrocinador.
Na fila do câmbio para comprar ienes, o japonês Daisuke Kawai, 22, diz: ""Estou sabendo que ainda não está muito animado". Ele retorna de uma temporada de um ano no Brasil, onde jogou no segundo time do Vitória-ES. Foi para aprender.
Por mais que se tenha falado sobre uma suposta falta de entusiasmo, a realidade ultrapassa o comentário mais amargo. O que começa a se confirmar é a fama de turismo mais caro do planeta. A passagem até o hotel no centro de Tóquio, num ônibus com duas poltronas estreitíssimas e sem divisórias entre elas, custa R$ 64.
O coletivo sai às 15h15, com viagem prevista em uma hora e meia devido ao engarrafamento. O motorista se senta à direita, como na Inglaterra. A mão de quem vai é a da esquerda. No caminho vêem-se pequenas plantações de arroz no campo encharcado. Em Osaka, mulheres plantaram ontem arroz na cerimônia típica anual. Simbolicamente, transmitiram sua fertilidade à terra.
Com o passar dos quilômetros, cresce a desconfiança de que há algo estranho. Desde as 15h30 (horário local), a seleção japonesa enfrenta a tunisiana numa partida decisiva. O ônibus passa por viadutos quase grudados a escritórios. No momento do jogo, as pessoas trabalham normalmente. Numa sala, cerca de 25 homens engravatados se reúnem em torno de uma mesa. O trânsito anda lentamente. As ruas estão cheias.
Em Seul, quando a seleção jogou, segunda, as empresas encerraram mais cedo o expediente, as escolas fecharam, as ruas ficaram vazias. Gente, só diante de telões.
Mais adiante, num ou outro bar, algumas pessoas assistem ao jogo. Em frente a uma vitrine com TV, exatos seis espectadores. O funcionário do hotel que acompanha o novo hóspede até o apartamento mostra os extintores de incêndio no corredor e insiste: decore onde estão. Na hora de encontrar a emissora com a partida, atrapalha-se: não sabe quem transmite. Até que encontra o canal 11.
Com o público em êxtase no estádio Nagai, em Osaka, o Japão vence por 2 a 0 e pela primeira vez passa à segunda fase.
Hora de procurar alguma festa em Tóquio. A televisão mostra uma comemoração com jovens mergulhando num rio. Infelizmente, a recepção do hotel informa: a cena é de Osaka.
Um estrangeiro com inglês macarrônico percebe o interesse e ajuda: acaba de vir das cercanias da estação de metrô Roppongi, bairro de música e boemia no centro da cidade. Milhares de pessoas viram a partida em telões. A festa continua, conta o homem.
Quinze minutos e três estações depois, o quadro pintado no desembarque em Narita passa a ganhar outros tons. E Tóquio não tem nada a ver com Seul.
Cerca de 20 mil pessoas assistiram ao triunfo, segundo a polícia, em telões que parecem ter um décimo do tamanho dos de Seul. Na capital sul-coreana, só em duas aglomerações reuniram-se 300 mil no princípio da semana.
Só que, na Coréia, a festa acaba com o apito final. Em Tóquio, não, como no Brasil. Nas horas seguintes à partida, uns 5.000 torcedores cruzam as ruas de um lado para o outro, cumprimentando-se com as mãos feito atletas de vôlei.
Há mascarados imitando o jogador japonês Miyamoto. Uma garota exibe uma tatuagem de mulher pelada nas costas, abaixo da camisa azul da seleção. De postes, torcedores ""mergulham" no colo dos amigos. Três rapazes mostram as camisetas. Cada uma tem uma palavra pintada, formando a expressão, eles traduzem, ""grande alma japonesa".
Ao contrário dos sul-coreanos, que obedecem religiosamente às ordens policiais, os japoneses ampliam a sua área para o meio da rua, até serem empurrados de volta. Há muitos gays, como eram tantos samurais. Mulheres usam saias curtas impensáveis em Seul, apesar dos 20C primaveris. Homens tiram as camisas. A festa japonesa tem a sensualidade que a coreana não tem.
Em torno da estação Roppongi, continuam os gritos de ""Nippon" (""Japão"), a correria e a cantoria. Um certo jornalismo não resistiria à tentação de concluir assim: a festa não tem hora para acabar.



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