São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Brincando de Kamikase

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A TÓQUIO

No começo da tarde de ontem em Tóquio, 21 homens de mais de 70 anos se arrumavam para uma foto a ser batida por um lambe-lambe. Quase todos usavam gravata. Seguravam uma bandeira estampada com uma âncora e caracteres japoneses.
""São veteranos da Segunda Guerra?", perguntou o visitante. ""Sim. Comandantes da Marinha", respondeu um deles, voz baixa. Um vizinho encheu o peito e, como se fosse preciso, esclareceu: ""Da Marinha imperial!"
Menos de 40 passos adiante, dois meninos se divertiam com dezenas de pombas, criadas ali de propósito como símbolo da paz. As aves pousavam em suas cabeças, ombros e braços.
Entre as duas imagens, um abismo de mais de 60 anos: o Japão que foi à guerra por uma Grande Ásia do Leste e o país cuja Constituição, promulgada após a rendição de agosto de 1945 aos Aliados, proíbe a manutenção de Forças Armadas convencionais com poder de ataque.
Os antigos oficiais estão à vontade: o santuário Yasukuni, em frente ao qual se perfilam para o registro histórico de mais um encontro, é um dos mais controversos centros espirituais do mundo.
Aqui estão os restos de 2,466 milhões de militares e civis japoneses que morreram em guerras desde 1853. Os 8 milhões de peregrinos anuais rezam pelas almas de todos, entre os quais 1.068 considerados criminosos de guerra, 14 deles executados após a Segunda Guerra (1939-45), como o primeiro-ministro Hideki Tojo.
A única diferença deste sábado é, segundo um guarda que se recusa a dizer o nome, a profusão de camisas azuis da seleção japonesa, um dia após a vitória por 2 a 0 sobre a Tunísia que valeu a vaga nas oitavas-de-final da Copa. O guarda nunca vira tantas.
O Yushukan, museu militar do complexo Yasukuni, está fechado para obras. No dia 9 será reaberto com um anexo, ampliando a área de exposições. O acervo é uma louvação ao belicismo, em destaque àquele que levou o Japão a expandir seu território e formar o Eixo com a Alemanha e a Itália.
Enquanto o trabalho não é concluído, está do lado de fora a estátua de um aviador antes de embarcar para uma missão suicida contra alvo inimigo. Dentro do prédio, há um torpedo humano original (""kaiten"), minúsculo submarino que era carregado de explosivos e com o qual os pilotos kamikazes atacavam.
No mês que vem, os visitantes vão poder continuar entrando dentro dele, numa espécie de brincadeira macabra para imitar a posição dos pilotos. Verão também uniformes e objetos pessoais de quem sacrificou a vida em nome do imperador.
Do lado de fora, no novo anexo com paredes de vidro, há um avião original idêntico aos usados pelos que se matavam mirando, na maioria das vezes, navios. Não há palavra sobre as bombas atômicas norte-americanas despejadas em Hiroshima e Nagasaki.
Os kamikazes eram o vento de Deus -em japonês, ""kami" significa Deus e ""kase", vento. E ""Yasukuni Jinja", ""santuário para estabelecer a paz no império".
Depois de 16 anos em que um chefe de governo do Japão não aparecia, o primeiro-ministro Junichiro Koizumi fez uma visita oficial no ano passado. Vítimas de atrocidades das forças imperiais na primeira metade do século 20 protestaram na Ásia.
O Yasukuni constitui um totem para a extrema direita. É associado ao um renascente ultranacionalismo, ao qual se opõe um vasto espectro político interno. Antes de começar a Copa, mesmo com o repúdio veemente do co-anfitrião, Koizumi voltou lá.
Há má vontade com estrangeiros. Além de não permitir que o repórter se aproximasse para fotografar o avião, funcionários do museu, irritados, esconderam a aeronave sob um pano azul.
Nos hotéis de Tóquio não há indicação do santuário. Nele, quase todos os comunicados são em japonês. Talvez por dizerem o seguinte: ""O sonho de construir a Grande Ásia do Leste foi uma necessidade histórica e um pedido dos países da Ásia. (...) Não podemos deixar de chamar a atenção para aqueles que querem manchar o bom nome das nobres almas do Yasukuni".
Entre elas, as de responsáveis pela invasão de nações autônomas, tortura, genocídio, trabalhos forçados e escravização sexual. Desde a construção do Yasukuni, em 1869, as cinzas de todos mortos em guerras foram trazidas para cá. Os restos de Hideki Tojo e outros criminosos vieram secretamente em 1978. Doações mantêm o santuário.
Com a camisa da seleção japonesa de futebol, a estudante de fotografia Mariko Sano, 25, fez ontem a segunda visita ao local.
Jogou uma moeda diante do santuário, em cuja parte de trás -sem acesso público- estão enterrados os militares.
Cumpriu o ritual de bater duas vezes as mãos. Rezou ""por todas as almas" e fez um pedido. ""Nenhum dos que estão aqui tiveram chance de escolha", afirmou. Como o primeiro-ministro, ela disse que não glorifica criminosos, mas homenageia 2,5 milhões de pessoas que morreram pelo país.
De violência real, hoje no Yasukuni só existem as lutas de sumô realizadas num ringue próximo a uma oficina de espadas que deixou de funcionar em 1945.


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