São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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TOSTÃO
A noite de uma campeã

Maria chegou à Vila Olímpica para dormir. No dia seguinte, disputaria a prova de sua vida. Era forte candidata ao ouro nos 100 m nado livre.
Deitou-se, e, rapidamente, as imagens de sua trajetória esportiva tornaram-se claras. Viu-se aos 9 anos, ao lado de seus pais e na frente do médico. O doutor dizia que ela tinha asma. Recomendou que nadasse bastante.
Maria estudava numa escola pública. Seus pais não tinham condição de pagar as aulas de natação. Durante meses, tentaram conseguir um lugar público. Nada! Viviam num país injusto e pobre. Mais injusto do que pobre.
Marcos, antigo campeão olímpico de natação, era professor de uma escola particular. Soube das dificuldades da garota e arrumou um lugar pra ela, de graça.
Maria se apaixonou pela natação. Tinha muito talento, disciplina e coragem. Marcos logo percebeu que ali poderia estar uma futura campeã. Depois do primeiro ano, Maria passou a nadar cinco horas por dia. À noite, estudava. Acordava bem cedo e pegava um ônibus para a escola. Após a aula, lanchava e ia para a piscina.
Criou-se uma grande expectativa em torno dela. Sabia que precisava viver com os pés no chão e não somente na água. Escutara várias histórias de atletas que investiram no esporte, abandonaram os estudos e se deram mal. Ficaram no meio do caminho. Nem uma coisa nem outra. Tornaram-se frustrados.
Dos 10 aos 20 anos viveu nessa rotina: nadando e sonhando em ir a uma Olimpíada. Mais que isso, ganhar uma medalha de ouro. O importante era vencer. Pensava, mas não dizia. Nada mais triste que a derrota.
Tentou dormir, mas não conseguiu. Acordou seu técnico. Ele a tranquilizou. Isso era comum. Significava que ela estaria mais concentrada na hora da prova.
Lá pelas 2h, dormiu e sonhou que estava na piscina, pronta para o início da competição.
Na raia quatro, pensou na família e nos amigos. Estavam todos assistindo pela TV. O Brasil estava de olho nela. Se vencesse, seria um mito. Se perdesse, apenas uma ótima atleta. Tudo se decidiria em menos de um minuto.
No momento do tiro de largada, acordou. Eram 8h. A prova aconteceria em poucas horas.
Naquele instante, questionou se valeu a pena. Passou a parte mais importante de sua vida nadando. Deixou uma outra vida. Lembrou que em nenhuma outra profissão viveria tanta emoção. Valeu!
Levantou-se tranquila. Nesse momento, teve a convicção de que, depois da prova, ganhando ou perdendo, abandonaria o esporte de competição. Começaria uma nova vida. De gente comum.
Sentia também algo misterioso, inexplicável. Uma certeza absoluta de que ganharia a medalha de ouro. De onde vinha essa impressão? De suas qualidades técnicas, de um sentimento místico, da certeza de que o destino estava traçado, ou seria tudo uma ilusão?
Pensou: "Será que existe uma personalidade, uma característica emocional de um campeão? Ou toda a lenda que se constrói sobre ele acontece somente após a vitória?".
Maria abriu a porta, entrou no ônibus e foi para a piscina. Confiante. Sentiu-se mais que uma atleta, um computador programado para vencer. Era humana.
E-mail tostao.folha@uol.com.br


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