São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001 |
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O amigo das criancinhas
DA SUCURSAL DO RIO Investigação da Folha nos últimos três meses descobriu outros fatos no caso da empresa de paraíso fiscal ligada a Pelé, 61, que ficou com US$ 700 mil destinados a uma festa do Unicef que não ocorreu: 1) A Pelé Sports & Marketing Inc. assinou contrato com uma empresa de Miami (EUA), a Sports Vision. No documento, Pelé se comprometeu a convencer jogadores e cantores a doar seus cachês e ceder os direitos de imagem ao Unicef. Com cláusula de confidencialidade, que obriga as partes a guardar segredo, definiu-se que a PS&M Inc. receberia US$ 3 milhões para organizar o evento, em Buenos Aires. A presença de Pelé, que divulgaria a festa em até 25 viagens, seria obrigatória. 2) No dia 20 de novembro de 1994, quando a PS&M Inc. assinou o contrato com a Sports Vision, esta firma não existia, conforme registra certificado obtido pela Folha no Departamento de Estado da Flórida. A Sports Vision só foi criada em 19 de janeiro de 1995. 3) Em 20 de novembro de 1994 também não fora assinado o contrato da PS&M Inc. com o Unicef, firmado mais de dois meses depois. O documento no entanto contém, numa aparente adivinhação, referências minuciosas ao compromisso de 1995 entre a PS&M Inc. e o Unicef. 4) Outra empresa de Miami, a Global Entertainment Organization, tomou um empréstimo de US$ 3 milhões do Banco Patricios Cooperativo, da Argentina, com o objetivo de financiar a organização do Move the World. O banco quebrou antes de fazer o repasse total. O endereço da Global é o mesmo da Sports Vision em Miami. E o valor do empréstimo é igual à quantia a ser entregue à PS&M Inc., que recebeu US$ 700 mil enquanto o Patricios não fechou. 5) Em 1999, num processo trabalhista movido por um ex-funcionário (ou ex-sócio, dependendo da versão), uma empresa nacional de Pelé, a Pelé Sports & Marketing Ltda., anexou uma carta do presidente da Global Entertainment, Guillermo Bassignani, endereçada à PS&M Ltda. A carta se referia ao projeto Move the World e favorecia os interesses empresariais de Pelé e seu sócio Hélio Viana. Só que na data em que foi escrita, 7 de maio de 1999, a Global já estava fechada havia quase quatro anos -foi dissolvida em 25 de agosto de 1995, como também apurou a Folha no Departamento de Estado da Flórida. 6) Oficialmente, Pelé não é ligado a outras empresas envolvidas no projeto da Argentina, além da PS&M Inc. Curiosidade: em Buenos Aires, o endereço da PS&M Inc. informado no contrato com o Unicef é o mesmo de Guillermo Bassignani, da Global. Em Miami, o endereço da Global (existência de novembro de 1994 a agosto de 1995) é o mesmo da Sports Vision (janeiro de 1995 a agosto de 1996). 7) Embora Hélio Viana tenha dito, em abril, à CPI da Câmara (CBF-Nike) que investigou o futebol, que era apenas um procurador da PS&M Inc., ele e Pelé tratam em documentos oficiais dos US$ 700 mil como dinheiro seu. Num documento entregue à Justiça trabalhista e assinado por Pelé e Hélio Viana, a PS&M Inc. e a PS&M Ltda. são tratadas como se fossem a mesma coisa. O registro comercial em paraísos fiscais como as Ilhas Virgens, sede da PS&M Inc., impede que se conheçam os donos das empresas. Sócios rompem Os contratos da PS&M Inc. com o Unicef-Argentina e a Sports Vision e a carta do presidente da Global Entertainment estão anexados ao processo 1.526/97, da 18ª Vara do Tribunal Regional do Trabalho, da 1ª Região, no Rio. Em sete volumes, os autos já somam 1.501 páginas. Trata-se de uma reclamação trabalhista do empresário Roberto Diniz Seabra contra a Pelé Sports & Marketing Ltda. Ele se diz ex-funcionário da empresa, enquanto Pelé e Viana afirmam que Seabra é ex-sócio, o que invalidaria o pleito de caráter trabalhista. Em 1996, ao sair da PS&M Ltda., Seabra assinou um pacto ("instrumento particular de pactuação de obrigações") com os dois principais sócios da empresa, Édson Arantes do Nascimento (o verdadeiro nome de Pelé) e Hélio Viana. Seabra teria a receber 50% do lucro líquido de quatro contratos vigentes da empresa, destacadamente o Move the World. Como não recebeu o que pensa ter direito -é contestado-, foi à Justiça, em 1997. Sem a disputa, não haveria hoje acesso público aos documentos relativos ao projeto na Argentina, juntados ao processo. Vários aspectos chamam a atenção no contrato da PS&M Inc. com o Unicef-Argentina. Pela empresa, assinam duas pessoas -Viana e Seabra. Pelé assina como "interveniente". Como no contrato com a Sports Vision e no pacto da ruptura com Seabra, Pelé assina pessoalmente -muitas vezes, ele usa procuradores. Ou seja: não só Viana e Seabra conheciam os detalhes do Move the World. Presente na celebração dos documentos, Pelé sabia de tudo. Redigido em espanhol, em 17 páginas, o contrato com o Unicef repetidamente informa que a PS&M Inc. nada ganharia, assumindo eventual prejuízo com a realização do evento. Renunciaria "a receber alguma comissão que poderia lhe corresponder como organizador do evento em benefício do Unicef". Pelé se compromete a jogar e a cantar uma música de sua autoria. Ele doa ao Unicef os direitos (filmagem, publicações etc.) relativos à iniciativa. Já no contrato da PS&M Inc. com a empresa norte-americana Sports Vision -sete páginas escritas na língua inglesa-, Pelé volta a se comprometer a jogar. Promete até levar o filho, o então goleiro Edinho. O texto não informa onde foi firmado o compromisso. Desta feita, a PS&M Inc. passa a ter direito a receber US$ 3 milhões, da Sports Vision, que assegura lugar de destaque a Pelé na divulgação: "Sua participação será enfatizada como a figura cativante, principal e central do evento". Por sua vez, Pelé prometeu "empenhar todo o esforço para convencer os jogadores e cantores reunidos a participar do evento e doar seus ganhos e ceder ao Unicef os direitos de transmissão e reprodução relacionados à sua participação". Meses depois, ele visitou Diego Maradona em Buenos Aires. Falou com entusiasmo das ações do Unicef, como registram reportagens da época. Na Argentina, o órgão da ONU divulgou as idéias do evento beneficente, destacando a generosidade dos futuros participantes, inclusive Pelé, que nada cobrariam. Ou seja: Pelé tentaria convencer astros do esporte e da música a atuar de graça, em nome da solidariedade, enquanto a empresa ligada a ele receberia US$ 3 milhões pela sua presença e pela organização da festa. No contrato com o Unicef-Argentina, Pelé renunciou "em favor do Unicef ao recebimento de alguma soma de cachê profissional, direitos de filmagem e publicação por qualquer meio da sua imagem, assim como da reprodução de sua assinatura, de sua voz e toda participação artística e exploração comercial de seu nome e imagem que esteja relacionada com o evento". No contrato com a Sports Vision, o ex-jogador deu a essa firma "o direito de usar a imagem, fotografias, vídeos, anúncios de televisão (...) de Pelé em todo o mundo com objetivos relacionados ao evento". Em suma: depois de se comprometer a organizar o Move the World de graça, a PS&M Inc. e Pelé firmaram contrato com outra empresa para ganhar US$ 3 milhões pelo trabalho. A PS&M Inc. recebeu US$ 700 mil antes que o Banco Patricios fechasse. Nada foi organizado para o evento. O contrato com o Unicef foi extinto em abril de 1996. Os US$ 700 mil não foram devolvidos nem à Sports Vision nem ao banco (que requisitou a devolução) nem ao Unicef. Na introdução do contrato com o órgão da ONU, assinado por Pelé, está escrito: ""a Pelé Sports manifestou sua vontade de colaborar com a missão que o Unicef-Argentina leva a cabo no país, concedendo prioridade absoluta à proteção da vida e do desenvolvimento da infância". (MÁRIO MAGALHÃES E SÉRGIO RANGEL) Texto Anterior: Exclusivo: Empresa ligada a Pelé arma evento beneficente e fica com o dinheiro Próximo Texto: Outro lado: Pelé se cala; sócio afirma 'inocência' Índice |
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