São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2000


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FUTEBOL

O dia em que o céu parou

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

E ra um jogo divino. O céu estava abarrotado de serafins, querubins, fadas, duendes, leprechauns, elfos, valquírias, nibelungos e mesmo espíritos malignos que se apertavam nas arquibancadas das nuvens, enquanto vendedores ambulantes faziam a festa com seus saquinhos de maná, ambrosia e néctar.
Jogava uma seleção de deuses gregos contra outra equipe, esta formada por deuses do resto do mundo.
Júpiter era o destaque dos gregos. Ele desferia chutes potentes, verdadeiros raios, de modo que volta e meia se ouviam agudinhos "ohs!" de Hera, Afrodite, Juno e um monte de outras deusas que juravam serem suas mulheres exclusivas.
Mas havia também Hércules, um zagueiro parrudo e com cara de poucos amigos.
Marte, um médio-volante irascível, e Plutão, um ponta-esquerda que jogava meio distante de seus companheiros.
Apesar disso, foi dele o passe para o primeiro gol: um lançamento preciso para Mercúrio, que entrou pela ponta tão rápido que parecia ter asas nos pés e cruzou para Netuno.
Este mergulhou e, de peixinho, fez 1 a 0.
Mas o time adversário não estava lá para sparring. Como já disse, era uma seleção formada pelo resto dos deuses.
Lá estavam Krishna, o goleiro de muitos braços.
Osires, um beque de postura majestosa e que jogava de braços cruzados.
Exu, um lateral-esquerdo que fazia faltas maldosas.
Odin e Thor, um meio-de-campo com entrosamento de pai e filho, e, principalmente, Tupã, a quem a torcida chamava de Tupãzinho e que era famoso por entrar durante as partidas e ajudar o time a reverter resultados negativos.
Acreditem ou não, foi o que aconteceu.
Logo depois de ter entrado, Tupãzinho lançou de longe, e Buda, de barriga, decretou o empate.
Os gregos protestaram -alegaram impedimento-, mas Deus, Jeová, o Juiz Supremo, disse que se era verdade que a barriga de Buda estava um metro adiante do último zagueiro, não era menos verdade que o centro de seu corpo encontrava-se na mesma linha.
E assim terminou o primeiro tempo.
A segunda etapa começou, e relâmpagos podiam ser vistos saindo do estádio das nuvens.
Ninguém queria perder aquela partida, pois os derrotados seriam chamados de semideuses e outros nomes feios.
As entradas mais duras se sucediam.
Era um jogo lá e cá, disputado com lances viris e jogadas que faziam o coração dos torcedores virem à boca.
Contudo, o placar não se movia: continuava no 1 a 1.
Faltavam 20 minutos para o final da partida quando um sujeito acanhado entrou pelas portas do estádio, sentou-se a um canto e começou a comer amendoim num saquinho cor-de-rosa.
Ficou ali assistindo ao jogo discretamente, tentando não chamar a atenção.
Porém, Deus, que tudo vê, logo percebeu de quem se tratava e parou de apitar.
Em segundos a multidão murmurava: "É ele! É ele!"
Os jogadores, envergonhados, não conseguiam realizar nem os lances mais fáceis.
E foi então que o Juiz Supremo e os dois capitães, Júpiter e Thor, se dirigiram humildemente até ele. Deus tomou a palavra:
"Senhor, os jogadores estão embaraçados com a sua presença e não conseguem pensar em mais nada. Gostaria de perguntar, em nome de todos os que aqui estão, se o senhor se dignaria a descer até o campo e jogar dez minutos para cada lado. Seria uma grande honra para todos nós."
O homem disse que não, mas o estádio inteiro começou a gritar: "Entra!, Entra!"
E ele, sem jeito, entrou.
Controlou a bola com maestria, deu dribles inesquecíveis e fez com que, naqueles 20 minutos, o céu ficasse em silêncio, como que hipnotizado pela grandeza da sua arte.
Foi assim a estréia de Domingos da Guia no céu.
torero@uol.com.br

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