São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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A casa das 5 mulheres

Em busca da primeira medalha feminina em Pans, canoístas reúnem dramas pessoais no interior gaúcho

GUILHERME ROSEGUINI
ENVIADO ESPECIAL A CAXIAS DO SUL

Calos e feridas viraram atração na escola. Adriélia Aparecida Soares já perdeu a conta de quantas vezes exibiu suas mãos a pedido dos colegas. "Eles ficam surpresos e me perguntam onde arrumei tantos machucados", explica.
A resposta resgata duas passagens que ela tem orgulho de narrar. Dos 8 aos 12 anos, colhia café para engrossar a renda da família.
Em 2000, passou a carcomer a pele com outra atividade. Adriélia ingressou em um projeto social que ensinava canoagem em Ribeirão Claro, cidade paranaense que fica a 400 km de Curitiba.
Tomou gosto pelo esporte e, apesar dos protestos da mãe, decidiu perseverar nas remadas. Hoje é dona de uma das 12 vagas da seleção brasileira permanente, cuja sede fica em Caxias do Sul (RS).
"Cheguei a treinar escondido. Lá em casa, mulher tinha que trabalhar para que nada faltasse na mesa", recorda a atleta.
Sua biografia assombra em uma modalidade que raramente abre espaço para praticantes com situação financeira austera -a embarcação mais simples usada nos torneios, o K-1, custa R$ 6.000.
Mas sua história não é exceção no grupo que hoje defende o país.
Quatro conterrâneas vivenciaram tramas semelhantes. Começaram por acaso na represa de Ribeirão Claro, superaram adversidades com talento e agora defendem o Brasil com um objetivo bem definido: conseguir a primeira medalha da canoagem feminina no Pan do Rio, em 2007.
São relatos sofridos, de quem encontrou no esporte a única chance de abandonar uma rotina espinhosa. Rosivânia Aparecida Gomez, por exemplo, costumava esmigalhar as mãos na colheita do café ao lado de Adriélia. Ela também seguia para a roça com sua mãe. No próximo mês, as duas estarão juntas em um cenário bem diferente: competirão, no Canadá, no Pan-Americano júnior.
"Eu não queria mudar de cidade, deixar meus familiares para trás. Mas a minha mãe me agarrou e disse: "Vai porque outra oportunidade como essa não aparece duas vezes'", diz Rosivânia.
A canoísta recebe R$ 400 por mês de ajuda de custo e envia parte da verba para Ribeirão Claro -prática repetida pelas colegas.
Para receber o salário e desfrutar de estrutura incomum no país (as integrantes da seleção dividem dois apartamentos de nove cômodos cada um, têm duas cozinheiras, psicóloga, médica, nutricionista e fisioterapeuta à disposição), é preciso seguir à risca normas estabelecidas pelos técnicos.
Além de dois treinos diários -chegam a percorrer 33 km por semana-, é preciso estudar. Reprovações na escola significam expulsão do grupo.
"Eu não estou acostumada com isso não. Tomei pau alguns anos porque ajudava nos trabalhos da minha casa não tinha tempo nem vontade de ficar lendo livros", narra Helena Aparecida Ferreira.
Aos 15 anos, órfã de pai -ela o viu morrer em um acidente de carro-, a atleta cursa a 4ª série do ensino fundamental, mesmo estágio frequentado por Rosivânia e Adriélia. Como enfrentam dificuldades para seguir o ritmo das colegas, as três investem economias em aulas de reforço -estudam português e matemática com professores particulares.
Esforços deste tipo já renderam frutos. Ana Cláudia Ferraz cogita cursar uma universidade, algo que nem em delírios sonhava alcançar. Antes de chegar à canoagem, trabalhou como carteira.
Criada pelos avós, cresceu distante dos pais e hoje ajuda sua mãe a se recuperar de moléstias causadas pelo alcoolismo.
Depois de engrenar na escola -está na última série do ensino médio-, descobriu que tem vocação para ser nutricionista.
"Aqui posso conciliar treinos com a faculdade. Meus avôs certamente não teriam dinheiro para bancar uma coisa dessas", diz.
A nova vida em Caxias traz esperanças à tona, mas também castiga pelos longos hiatos longe de casa. Caçula da seleção, Lacy Cristina Bianqui sofre com efeitos práticos da saudade.
Com 14 anos, costuma atacar o mercado próximo a sua residência e se entupir de chocolates quando sente falta da família -nesta temporada, por exemplo, ainda não conseguiu viajar para Ribeirão Claro. Resultado: está com percentual de gordura alto e precisará cortar a extravagância.
"Já parei. Não vou fazer nada que possa me prejudicar", conta.
Essa dedicação reflete um pensamento comum. As cinco repetem um mantra: é preciso pensar grande, lutar por uma medalha no Pan do Rio e uma vaga na Olimpíada de Pequim-2008.
São eventos de envergadura, que trariam reconhecimento e ajudariam a alcançar desejos antigos. Adriélia, personagem que abre essa reportagem, quer uma medalha que a leve para os programas de TV. Quem sabe, então, seja reconhecida pelo pai biológico. Ele abandonou a casa pouco após seu nascimento. "Não sei como seria vê-lo, nem sei se gostaria dele. Mas é uma curiosidade que o esporte pode me ajudar a matar."


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