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A casa das 5 mulheres
Em busca da primeira medalha feminina em Pans, canoístas reúnem dramas pessoais no interior gaúcho
GUILHERME ROSEGUINI
ENVIADO ESPECIAL A CAXIAS DO SUL
Calos e feridas viraram atração
na escola. Adriélia Aparecida Soares já perdeu a conta de quantas
vezes exibiu suas mãos a pedido
dos colegas. "Eles ficam surpresos
e me perguntam onde arrumei
tantos machucados", explica.
A resposta resgata duas passagens que ela tem orgulho de narrar. Dos 8 aos 12 anos, colhia café
para engrossar a renda da família.
Em 2000, passou a carcomer a
pele com outra atividade. Adriélia
ingressou em um projeto social
que ensinava canoagem em Ribeirão Claro, cidade paranaense
que fica a 400 km de Curitiba.
Tomou gosto pelo esporte e,
apesar dos protestos da mãe, decidiu perseverar nas remadas. Hoje
é dona de uma das 12 vagas da seleção brasileira permanente, cuja
sede fica em Caxias do Sul (RS).
"Cheguei a treinar escondido.
Lá em casa, mulher tinha que trabalhar para que nada faltasse na
mesa", recorda a atleta.
Sua biografia assombra em uma
modalidade que raramente abre
espaço para praticantes com situação financeira austera -a embarcação mais simples usada nos
torneios, o K-1, custa R$ 6.000.
Mas sua história não é exceção
no grupo que hoje defende o país.
Quatro conterrâneas vivenciaram tramas semelhantes. Começaram por acaso na represa de Ribeirão Claro, superaram adversidades com talento e agora defendem o Brasil com um objetivo
bem definido: conseguir a primeira medalha da canoagem feminina no Pan do Rio, em 2007.
São relatos sofridos, de quem
encontrou no esporte a única
chance de abandonar uma rotina
espinhosa. Rosivânia Aparecida
Gomez, por exemplo, costumava
esmigalhar as mãos na colheita do
café ao lado de Adriélia. Ela também seguia para a roça com sua
mãe. No próximo mês, as duas estarão juntas em um cenário bem
diferente: competirão, no Canadá, no Pan-Americano júnior.
"Eu não queria mudar de cidade, deixar meus familiares para
trás. Mas a minha mãe me agarrou e disse: "Vai porque outra
oportunidade como essa não aparece duas vezes'", diz Rosivânia.
A canoísta recebe R$ 400 por
mês de ajuda de custo e envia parte da verba para Ribeirão Claro
-prática repetida pelas colegas.
Para receber o salário e desfrutar de estrutura incomum no país
(as integrantes da seleção dividem
dois apartamentos de nove cômodos cada um, têm duas cozinheiras, psicóloga, médica, nutricionista e fisioterapeuta à disposição), é preciso seguir à risca normas estabelecidas pelos técnicos.
Além de dois treinos diários
-chegam a percorrer 33 km por
semana-, é preciso estudar. Reprovações na escola significam
expulsão do grupo.
"Eu não estou acostumada com
isso não. Tomei pau alguns anos
porque ajudava nos trabalhos da
minha casa não tinha tempo nem
vontade de ficar lendo livros",
narra Helena Aparecida Ferreira.
Aos 15 anos, órfã de pai -ela o
viu morrer em um acidente de
carro-, a atleta cursa a 4ª série do
ensino fundamental, mesmo estágio frequentado por Rosivânia e
Adriélia. Como enfrentam dificuldades para seguir o ritmo das
colegas, as três investem economias em aulas de reforço -estudam português e matemática
com professores particulares.
Esforços deste tipo já renderam
frutos. Ana Cláudia Ferraz cogita
cursar uma universidade, algo
que nem em delírios sonhava alcançar. Antes de chegar à canoagem, trabalhou como carteira.
Criada pelos avós, cresceu distante dos pais e hoje ajuda sua
mãe a se recuperar de moléstias
causadas pelo alcoolismo.
Depois de engrenar na escola
-está na última série do ensino
médio-, descobriu que tem vocação para ser nutricionista.
"Aqui posso conciliar treinos
com a faculdade. Meus avôs certamente não teriam dinheiro para
bancar uma coisa dessas", diz.
A nova vida em Caxias traz esperanças à tona, mas também
castiga pelos longos hiatos longe
de casa. Caçula da seleção, Lacy
Cristina Bianqui sofre com efeitos
práticos da saudade.
Com 14 anos, costuma atacar o
mercado próximo a sua residência e se entupir de chocolates
quando sente falta da família
-nesta temporada, por exemplo,
ainda não conseguiu viajar para
Ribeirão Claro. Resultado: está
com percentual de gordura alto e
precisará cortar a extravagância.
"Já parei. Não vou fazer nada
que possa me prejudicar", conta.
Essa dedicação reflete um pensamento comum. As cinco repetem um mantra: é preciso pensar
grande, lutar por uma medalha
no Pan do Rio e uma vaga na
Olimpíada de Pequim-2008.
São eventos de envergadura,
que trariam reconhecimento e
ajudariam a alcançar desejos antigos. Adriélia, personagem que
abre essa reportagem, quer uma
medalha que a leve para os programas de TV. Quem sabe, então,
seja reconhecida pelo pai biológico. Ele abandonou a casa pouco
após seu nascimento. "Não sei como seria vê-lo, nem sei se gostaria
dele. Mas é uma curiosidade que o
esporte pode me ajudar a matar."
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