São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 2002

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WILL SELF

O valor agregado do futebol inglês

Odeio desapontar os leitores brasileiros que consideravam um bálsamo eu só me aproximar da Copa do Mundo para fazer uma análise histórica e cultural. Mas o triste é que ela finalmente começou a me atrair. Sim, de forma quase inevitável, como um barco arrastado pelos tentáculos de um enorme polvo, me descobri interessado pelo desfecho da competição.
Apresso-me em assegurar a você: isso nada tem a ver com patriotismo, nem com o fato de que a Inglaterra tenha enfrentado o Brasil nas quartas-de-final (quando você ler isto, o resultado já será conhecido, mas são tantas as exigências do jornalismo internacional que estou escrevendo na manhã de quinta-feira).
Meu coração não bate mais rápido por conta da possibilidade de a Inglaterra avançar na Copa à custa de um massacre da seleção brasileira, considerada em todo o mundo uma espécie de gigante mitológico deste esporte. Imenso colosso, que faz girar uma bexiga de couro como se ela fosse o próprio globo. Não, não.
Nem a atmosfera barulhenta e festiva tem me seduzido. Permaneço distante disso, concentrado em meus estudos, lendo os aforismos de Schopenhauer, enquanto a meu redor rapidamente quase todos os caminhões, carros, motos e mesmo pedestres exibem a detestável bandeira inglesa.
Tampouco tenho a esperança de ser convidado por uma bela garota para copular em público logo depois de um gol de Beckham no primeiro minuto da partida desta sexta. Não, eu não.
A verdade é que meu interesse tem sido despertado por razões horrivelmente egoístas.
A primeira delas tem a ver com minha arrogância. Nas últimas três semanas, predisse os resultados das partidas da seleção inglesa melhor que qualquer jornalista esportivo. Como, você deve perguntar, serei eu capaz de antecipar a performance dos jogadores quando apenas sei quando começa e termina um jogo?
A resposta é que os "chamados" especialistas são iludidos por uma herança teórica dos acontecimentos esportivos. Aqui na Grã-Bretanha (e, ouso dizer, no Brasil), não há um único texto sobre futebol que não inclua estatísticas relacionadas com performances anteriores. Assim, quando os EUA derrotaram o México na segunda-feira, todos os jornalistas assinalaram que os norte-americanos não haviam ido tão longe desde a primeira Copa, em 1930. Mas aquilo tinha alguma coisa a ver com o que ocorreu agora? As únicas partidas que podem ser comparadas com esta são as que reúnem os mesmos jogadores. Todo resultado com mais de dez anos é totalmente irrelevante no futebol mundial.
Por que os cronistas acreditam naquilo? Porque, caso contrário, não teriam nada sobre o que escrever. Diferentemente de mim, eles não podem se guiar no abundante conhecimento cultural e histórico, a partir do qual podem construir um elaborado e teórico sistema para interpretar a semiótica do futebol. Tome a partida que você acabou de testemunhar. Se, como prevejo, a Inglaterra tiver perdido de 2 a 0, você ficará surpreso ao descobrir que isso será amplamente considerado pelos ingleses uma grande vitória.
Embora o torneio esteja em uma fase eliminatória, os ingleses avaliam sua seleção por meio de um sistema que agrega os gols. A vitória sobre a Dinamarca foi tão desproporcional (três gols! inacreditável!) que será levada em conta na partida seguinte.
Previ em meu último artigo que a seleção poderia não mais que se arrastar, arrancando apenas um gol por partida, antes de ser batida pelo Brasil. Mas, do jeito que as coisas ficaram, a Inglaterra terá derrotado o Brasil antes mesmo de entrar em campo às 3h30, no horário brasileiro, por conta dos dois gols extras marcados diante da Dinamarca. Como, há muito tempo ela não perde por uma diferença maior que três gols, os torcedores vão sentir que arrancaram um empate diante de um inimigo poderoso.
Claro, se a Inglaterra, inconcebivelmente, tiver superado o Brasil, ainda assim minha previsão continuará verdadeira: a Inglaterra bateu o Brasil. Não importa o que a Inglaterra faça, trata-se de uma situação vitoriosa.
E minha mulher, contemplando minha incapacidade de ter um interesse real ou prazer nesta Copa, ainda tem a ousadia de me chamar de misantropo! Não sei, talvez ela devesse ter se casado com Schopenhauer.


Will Self, 38, é autor de "Cock and Bull" e "Quantity Theory of Insanity" e um dos mais importantes nomes da nova geração de escritores britânicos



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