São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Novos ricos

Nova era põe dinheiro no bolso dos atletas, que vão às compras

GUILHERME ROSEGUINI
ENVIADO ESPECIAL A ATENAS

Tempos austeros. Jader Souza usava o mesmo par de tênis por um ano, às vezes até dois anos seguidos, não importa o quão surrados e encardidos estivessem.
Era tudo o que sua família no Macapá podia oferecer. O nadador afirma que nunca reclamou, mas prometeu que mudaria tudo.
Cumpriu a profecia. "Perdi a conta de quantos tênis tenho. Com certeza são mais de 15 pares", diz o atleta de 22 anos, cujo melhor resultado nos Jogos foi um 12º lugar no 4 x 100 m livre.
Ele recebe salário para praticar esporte. Grande parte do dinheiro vem do governo do Estado onde nasceu. Revelar o valor, nem pensar. Apenas o que, até agora, foi adquirido com a verba.
"Comprei geladeira e fogão para o meu apartamento. Tenho até uma máquina fotográfica digital para registrar minha participação aqui em Atenas", conta o atleta.
Souza é o retrato de um Brasil diferenciado que compete na Grécia. Com dinheiro público ou de patrocinadores, os atletas conseguem realizar audaciosos ou pequenos sonhos de consumo com economias obtidas em piscinas, quadras, pistas e tatames.
Só em 2003, as confederações olímpicas arremataram R$ 29 milhões apenas com recursos da Lei Piva, oriundos das loterias da Caixa Econômica Federal.
Desse total, R$ 2,43 milhões acabaram diretamente no bolso dos atletas, em forma de salários ou ajuda de custo. Foi o suficiente para produzir casos curiosos, como o do paulista Daniel Baldacin, da seleção brasileira de handebol.
Campeão no Pan-2003, ele ainda acalentava um desejo desde a infância: rodar o país a bordo de uma possante caminhonete.
A equipe começou a receber uma ajuda de custo em 2004, que mesclou patrocinadores e recursos da lei. Baldacin aproveitou, retirou do banco uma antiga poupança, juntou tudo e comprou um veículo com tração nas quatro rodas. Malas feitas, viajou.
Deixou a cidade de São Paulo, onde vive, foi para o Chuí e rodou até o Nordeste. "Faltou apenas a Região Norte para dar uma volta completa. É bom deixar algo em aberto, assim posso viajar de novo no futuro", explica.
O novo tour pelo país, entretanto, não acontecerá com o mesmo carro. Pouco antes de embarcar para Atenas, Baldacin teve o veículo roubado.
"Eu estava treinando. Quando voltei, a caminhonete não estava onde eu havia deixado. Agora preciso começar de novo."
Como é praxe entre os atletas, ninguém fala do valor do salário. "Não é bom ficar dizendo o quanto ganha. Mas posso dizer que gasto boa parte do que ganho com o próprio esporte", conta a velejadora Adriana Kostiw.
Ela explica que até as peças mais baratas de seu barco, da classe 470, chegam a custar R$ 500. "E precisam ser trocadas com bastante freqüência", completa.
Mas sempre sobra algo para a satisfação pessoal, como ocorreu com o paulista Daniel Hernandes, judoca que deixou Atenas na nona posição entre os pesados.
Desde criança, ele era encantado pelos modelos mais modernos de geladeiras, daqueles em que se pode retirar água pela parte de fora, sem abrir a porta principal.
"Eu sempre tive vontade de ter um desses, de tomar água sem precisar pegar a garrafa dentro do refrigerador. Foi a primeira coisa que fiz quando consegui juntar um bom dinheirinho", conta.
Seu colega Mário Sabino foi mais parcimonioso nos gastos. Guardou tudo o que recebia para acabar com o trauma de pagar aluguel todo mês.
Eliminado na primeira luta entre os meio-pesados, ele tem ao menos um alento no retorno à Jaú, no interior de São Paulo, onde cumpre sua rotina como soldado da Polícia Militar.
"Hoje eu tenho casa própria. Só consegui pagar tudo porque recebia alguma coisa para lutar. Isso é o diferencial", conta.


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