São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Terra de samurais vê duelo individual para fazer ou mudar trajetórias

A guerra de cada um

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A YOKOHAMA

Na terra dos antigos samurais, a véspera da batalha suprema de todas as batalhas do futebol, a final de uma Copa do Mundo, foi sendo dominada pouco a pouco ontem pelo prelúdio da guerra.
No começo da tarde, na saída do hotel rumo ao estádio, nada indicava que seria assim. Uma recepcionista ensinou como ir de trem para o ""Yokohama Stadium", como queria o visitante. Era embarcar na estação Yokohama e descer na Kannai. Barbada.
Por desencargo de consciência, uma consulta no balcão de informações da estação revelou: a indicação ao estrangeiro havia sido para o estádio de beisebol, e não para o ""International Stadium Yokohama", o de futebol.
Como se pudesse existir outra coisa, neste fim de semana e neste lugar, que não futebol. À noite, a estação estaria tomada por barracas vendendo produtos futebolísticos, pela exposição de jornais com a cobertura dos jogos e por dezenas de pessoas vestindo as camisas das seleções. O espírito da Copa, enfim.
No caminho certo para o estádio, na quarta parada se desce em Shin-Yokohama para ir a pé.
No portão, dois camelôs californianos vendem camisas piratas da seleção brasileira por R$ 94, menos da metade do preço das legítimas.
O mineiro de Uberlândia Paulo José Alves, 60, está de volta do estádio. Irritado, reclama da proibição para os torcedores assistirem ao treino do Brasil que iniciará em uma hora. Confia no penta. ""Estamos quatro anos atrasados. O mundo ainda vai saber que doparam o Ronaldo em 98."
Mais adiante, na caminhada de pouco menos de 1 km até o estádio, no café Oriental Table se ouve ""Você e Eu", de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, aparentemente cantada pelo primeiro.
Saindo do café, um menino japonês passa dormindo no carrinho. Está com uma tatuagem da bandeira do Brasil na bochecha direita. Os pais querem acordá-lo para o retrato. Não é preciso.
A frente do estádio é enfeitada com arranjos florais formando a expressão World Cup 2002. As flores amarelas contrastam com a grama verde. Sentados, três amigos alemães lamentam a barração. Queriam ver o treino da Alemanha, depois do brasileiro.
Dietmar, 27, Reinhard, 32, e Ralf, 35 -só dizem um nome- contam a mesma história: nunca esperaram sua seleção na final e, se ela perder, já vai estar no lucro com o vice. O auge do time será em 2006, esperam.
No treino, um repórter indiano exibe todo o seu distanciamento crítico brechtiano: veste uma camisa da seleção brasileira. Como usa uma cabeleira flagrantemente artificial, colegas brasileiros o apelidaram de Peruquinha.
Poucos aqui dizem ter percebido o terremoto da madrugada -mesmo quem estava acordado não sentiu nem cosquinha.
Como previsto, o treinamento é para conhecer o gramado, um tanto pesado devido à chuva. A bola levanta água ao rolar.
Só uma parte mais séria: no fim, como no dia anterior, o técnico Luiz Felipe Scolari ensaia faltas com quatro jogadores: Rivaldo, Ronaldo, Roberto Carlos e Ronaldinho. Há uma cobrança com a participação dos quatro.
Quatro anos atrás, o treino de sábado antes da decisão dominical da Copa da França foi tranquilo assim. No dia seguinte, o impacto da derrota por 3 a 0 e o mistério: o que se passara com Ronaldo, que crise fora aquela?
Com centenas de jornalistas brasileiros naquele Mundial, nenhum planejamento se preocupou em seguir o ônibus da seleção do Château de Grande Romaine ao Stade de France. Ronaldo não seguiu nele, indo para o estádio após passar numa clínica.
O plantão, contudo, quase certamente seria inócuo: o château tinha mais de uma saída; a polícia vetava a aproximação aos ônibus e aos carros, impedindo que se visse quem estava -ou não- dentro; e várias vezes, quando queriam, pessoas saíam sem ser notadas.
A vigilância jornalística do ônibus da seleção foi instituída na Copa de 94, depois que a Folha registrou sozinha o ônibus quebrado numa estrada, e os atletas pedindo carona. Na final de 98, foi esquecida. Hoje, é possível que haja uma procissão para ver se a ida para o estádio correu sem problemas -e se com Ronaldo está tudo bem.
Para o atacante, e muitos companheiros seus, a Copa-2002 é uma espécie de acerto de contas. Dele com ele, e dele com a história do futebol. O desenlace da final não muda em nada -para mais ou menos- o talento que tem, mas estabelece marcos.
Nos últimos anos, Ronaldo leu e ouviu que estava liquidado por um joelho, que tivera o apogeu precoce e que lhe faltava cabeça para conviver com tensões. Rivaldo foi carimbado como jogador de clube. Roberto Carlos, um virtuose incapaz de transformar o dom em poderio coletivo. Cafu, um inepto sem técnica. Scolari, um tosco teimoso.
É sob a espada dessas sentenças -corretas ou não-, algumas com ambições de perpetuidade por alguns ""juízes", que a seleção joga hoje. A batalha é de uma equipe inteira contra outra, mas também um embate individual para escrever ou reescrever trajetórias. É a guerra de cada um.
O local não poderia ser mais simbólico. O Japão produziu grandes guerreiros através dos tempos. O espírito eternizou-se. Nos anos 1990, quando foi criada a liga japonesa de futebol, proibiram-se empates. Nenhum jogo terminava em igualdade. Pênaltis decidiam. Era preciso haver sempre um vencedor e um derrotado. Como logo mais.


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