São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 2002

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TURISTA OCIDENTEAL

Na Copa dividida, país quer provar que pode fazer melhor que o Japão

A nova guerra da Coréia

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL

Manhã de domingo, Seul. Começa a visita ao santuário Chongmyo. Construído em 1396, no alvorecer da dinastia Choson (1392-1910), é patrimônio da humanidade. São 10h30.
Menos de quatro minutos depois, a guia Hyeon-ju, 37, anota: ""Boa parte foi destruída pelos japoneses na invasão de 1592, mas reconstruída em 1608". A cada edificação ou detalhe, repete: o Japão destruiu, foi reerguido. Diz isso oito vezes.
Fim da tarde de domingo, ainda em Seul. Intervalo do amistoso Coréia x França. Uns 20 mil torcedores se acotovelam diante dos telões instalados em três prédios.
A professora Kang Hye-seon, 23, conta o que quer do Mundial: ""Que a Coréia o organize melhor e que vá mais longe do que o Japão". Só? ""Aqui nós não gostamos do Japão."
Manhã de terça-feira. O ônibus turístico partiu da capital sul-coreana há pouco para a viagem de 62 km até a cidade de Panmunjom, administrada na fronteira pelas Coréias do Sul e do Norte.
O guia Lee Sung-ki, 29, passa por um morro e registra: ""Aqui as mulheres coreanas vinham buscar pedras para jogar nos japoneses". Não diz quando. Cita livros, lançados ano passado no Japão, que são acusados por governos, entidades e intelectuais asiáticos de ocultar atrocidades da Segunda Guerra. ""São livros falsos."
Quando hoje a banda de instrumentos típicos coreanos soar os acordes iniciais dos hinos da Coréia do Sul e do Japão, abrindo no estádio de Seul a 17ª Copa do Mundo, uma outra batalha, menos visível, mas igualmente disputada, estará se desenrolando.
Para ver qual dos anfitriões será melhor. O mais entusiasmado. O time superior. A Copa será jogada em países com desconfianças, ódios e pendengas seculares. Os governos pretendem, com o maior evento esportivo de uma só modalidade, fomentar laços fortes e duradouros.
Na economia, há progressos na aproximação. A câmara digital com que são feitas as fotografias desta página é da japonesa Nikon. Fabricada na Coréia.
Entreveros do passado, alguns de arrepiar, ajudam a explicar um pouco do presente, no que o jornal "The Korea Times" chama de "persistente antipatia na Coréia contra o Japão". Ao se retirarem da invasão de cinco anos, em 1597, os militares japoneses levaram orelhas e, de preferência, narizes de coreanos. Alguns foram arrancados com o inimigo vivo, deixando uma legião de sem-orelhas e sem-narizes. Foram carregados, e depois queimados, 38 mil mimos.
Em 1910, o Japão anexou a Coréia. Ficou até 1945. Disseminou o trabalho forçado. Impôs a milhares de homens se alistar e morrer em nome do imperador nipônico. Fez de mais de 100 mil coreanas escravas sexuais. Proibiu o futebol. Os habitantes foram proibidos de falar a sua língua. Receberam nomes em japonês.
Antes dessas duas invasões, tinha sido a vez de a Coréia atacar a ilha de Tsushma, do Japão. Corria o remoto ano de 1419.
Foram-se as armas, não o mal-estar. Os japoneses continuam a produzir piadas onde o ""português" é o coreano. Episódios que entre brasileiros e argentinos valeriam, se tanto, um palavrão, viram embates diplomáticos.
Na semana passada, o jornal "The Japan Times" teve de tirar do seu site um relato sobre prostitutas em Seul. Virou uma quizumba, com protestos irados.
Funcionários coreanos reclamam que os televisores nas cabines dos estádios serão JVC, japoneses, e não nacionais. A JVC é patrocinadora da Copa.
Outros casos recentes são mais complexos. A Coréia reagiu quando no ano passado o primeiro-ministro japonês, Junichiro Koizumi, visitou um santuário onde estão os restos de 13 criminosos da Segunda Guerra. Ele repetiu a dose. Os livros didáticos são outro embate não-resolvido.
Os vizinhos enfrentaram-se para ter o Mundial. Ambos ganharam, mas perderam por reparti-lo. O Japão triunfou na queda-de-braço para receber a final. Definiu-se, contudo, que a Copa é Coréia-Japão, não o contrário.
Os coreanos comemoram o resultado de uma pesquisa sobre o interesse pela Copa do Mundo em dez países da Ásia e da Oceania. A Coréia foi a primeira, com 89%. O Japão, o penúltimo, com 33%.
Em Seul, a metrópole de 11 milhões onde mora um de cada quatro habitantes do país, a euforia com a Copa supera de longe o que se viu nos EUA-94 e na França-98. Descrições sobre frieza têm origem na provinciana Ulsan, onde a seleção brasileira se hospeda. Mesmo quando erram, ao esquecer o primeiro ""o" de ""ordem e progresso" em algumas poucas bandeiras do Brasil, os coreanos são simpáticos.
O Japão, aparentemente menos empolgado, tem um trunfo para a virada: a decisão de 30 de junho.
Um mês antes dela, manhã de ontem
no Memorial da Guerra, em Seul. Uma estátua mostra dois irmãos de lados opostos se abraçando na Guerra da Coréia (1950-53), que opôs o Sul capitalista ao Norte comunista. Soldados fazem exibições marciais. Expõem-se feitos milenares. E também as invasões japonesas e o fiasco no Vietnã, onde a Coréia do Sul apoiou os EUA e perdeu 4.770 homens. Mesmo querendo, parece que o país não consegue se livrar das guerras. Pelo menos, desta vez, a "guerra" é só para promover uma Copa melhor que o Japão. Prognósticos de vencedor são precipitados.



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