São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 2002

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WILL SELF

Considerações de um homem anêmico

Toda atitude de uma nação com respeito ao jogo de futebol é uma reflexão -em maior ou menor medida- sobre sua própria consciência.
No caso da Inglaterra, essa autoconsciência é incalculavelmente maior. Não só os ingleses se portam como os inventores do esporte, como acreditam que os grandes fatos do desenvolvimento histórico e social do país no século passado estiveram diretamente ligados ao grande jogo.
Corridas de cavalos podem ser o esporte dos reis (e a rainha Elizabeth 2ª e sua mãe, morta há pouco, exemplificam perfeitamente isso, gastando milhões de libras com elas), mas o futebol é o jogo do povo.
Dessa forma, o inglês (e, em número crescente, a inglesa) fanático por futebol se vê como participante de um espetáculo altamente estilizado, no qual -perversamente- os deuses devem ser acalmados em troca da vitória.
A despeito da europeização (e em certa medida globalização) da Liga Inglesa de futebol nos últimos 20 anos e da diminuição do defensivismo de seus times por conta disso, a expectativa da catástrofe ainda assombra o sentimento nacional.
Como um grupo de caçadores de casaca vermelha, a Inglaterra se apresentará, como sempre, com o esquema 4-4-2, preparado não para marcar gols, mas meramente para evitá-los.
Esqueça o estilo de David Beckham e seus penteados rebeldes, esqueçam a presença no banco de um técnico sueco (o que poderia ser mais chato?). A verdadeira essência sobre o que a Inglaterra sente em relação à Copa que se aproxima está na capa desta semana da "Private Eye". Com o Mundial coincidindo com o 50º aniversário do reinado de Elizabeth 2ª, a revista satírica escolheu uma fotografia de Sua Majestade apertando as mãos de Sven-Goran Eriksson. Nos balões de diálogo, a rainha diz "a Inglaterra espera...", e o técnico responde "...voltar cedo para casa, senhora".
O historiador Felipe Fernandez-Armesto descreveu a Inglaterra do século 20 como uma nação que "desejava fortemente o declínio".
Claro, a mesma atitude derrotista pode ser vista em sua relação com o futebol. Masoquismo é coloquialmente tratado pelos franceses como o "vício inglês". Ninguém tem uma visão mais miserável de si do que o inglês.
Você pode ter notado ao longo deste texto que tenho me referido aos ingleses como se eu próprio não fosse um deles. Há duas razões para isso. Primeiramente, embora tenha nascido em Londres e possua um passaporte inglês, nunca fui muito patriota. Como republicano, todo o espetáculo hagiográfico da realeza me causa calafrios. Em segundo lugar, não sou um fã de futebol. Na Inglaterra -e penso que o mesmo ocorra no Brasil-, isso faz de mim um homem anêmico. Acredito que 90% dos homens ingleses torcem por um time de futebol. Será que os 10% restantes também são republicanos?
Enfatizei todos esses aspectos ao editor deste conceituado jornal quando me sugeriu que eu escrevesse uma coluna durante a Copa do Mundo.
Mas, longe de sentir que isso me desqualificava, ele se disse interessado por minha visão desapaixonada em meio a um evento repleto de paixões.
Espero poder oferecer isso a você nos artigos semanais. Deverei me levantar mais cedo para assistir às partidas.
Se a Inglaterra avançar até as fases finais, prometo uma análise aguda dos efeitos perniciosos que isso terá na derrotista psique nacional. Se, o que é mais provável, o time inglês voltar mais cedo para casa, estarei em posição de comentar como o veneno nacional será derramado sobre todas as seleções estrangeiras que têm a ousadia de serem bem-sucedidas, como a do Brasil. Aproveite.


Will Self, 38, é autor de "Cock and Bull" e "Quantity Theory of Insanity" e um dos mais importantes nomes da nova geração de escritores britânicos



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