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A REVOLUÇÃO DOS BICHOS
Calouros comemoram entrada na universidade com atividades de ajuda à comunidade e deixam de lado as brincadeiras que culminam em violência e morte
Trote sem medo
Tuca Vieira/Folha Imagem
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Alunos de educação física da USP, que programam semana de trotes solidários |
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
Tomar um banho de óleo queimado, rastejar
na lama, ficar horas amarrado em um poste
ou ser obrigado a andar nu por aí certamente
não são as comemorações que alguém tem em
mente ao entrar na faculdade. Só que, em muitos casos, depois de ter enfrentado o pesadelo
do vestibular, o bicho ainda tem de encarar esse tipo de "brincadeira", imposta por veteranos sob o disfarce de atividade de integração
dos novos colegas: o trote.
Intimidados, durante muito tempo os calouros foram obrigados a aceitar certas humilhações como rito de passagem da adolescência descompromissada para a vida de estudante universitário.
Nos últimos anos, no entanto, com os registros frequentes de excessos nas práticas de trote, acumularam-se denúncias de abusos, e algumas instituições reagiram.
Em 93, a Unesp criou uma comissão de apuração dos casos de trotes violentos e a PUC
proibiu a prática dentro da universidade. Nos
anos seguintes, várias universidades criaram
restrições e punições para veteranos que insistissem nas tais recepções de calouros nada
acolhedoras. O impossível estava acontecendo: parecia o fim do trote.
Para que a brutalidade de uns não acabasse
com a tradição de brincadeiras e festas -que
muitos bichos esperam e gostam de encontrar
nos primeiros dias de aula-, grupos de alunos de algumas faculdades buscaram, por iniciativa própria, práticas alternativas e inauguraram o trote solidário.
Apesar de tímida, essa iniciativa ganhou eco
e muitos trotes foram substituídos por campanhas de doação de sangue e de arrecadação
de alimentos e de roupas.
Em 98, os trotes solidários deixaram de ser
iniciativas isoladas e ganharam apoio institucional. Foi nesse ano que a Fundação Educar
DPaschoal deu início ao projeto Trote da Cidadania com alunos da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Tragédia
Para chegar à grande virada na história do
trote no Brasil foi preciso, antes, acontecer
uma tragédia. Em 99, o calouro da Faculdade
de Medicina da USP Edison Hsueh foi encontrado morto na piscina da associação atlética
dos alunos, no dia seguinte a um churrasco
oferecido pelos veteranos. Naquele momento,
a ficha caiu tanto para veteranos quanto para
reitores e autoridades públicas. E, com ela, caiu
também a idéia de avacalhar os novos colegas
aprovados no vestibular.
Em 2000, uma pesquisa da Fundação Educar
DPaschoal apontava que 54% das universidades brasileiras já praticavam o trote solidário.
Nesse ano, também surgiram disque-denúncia e campanhas na internet, na UNE e no metrô. A reitoria da USP encomendou uma campanha ao professor Dorinho Bastos, 51, da Faculdade de Publicidade e Propaganda, que foi
realizada por alunos do curso e espalhada pelo
campus. A iniciativa já está em sua terceira edição. "Ela surgiu como uma proposta da reitoria, que queria acabar com o trote. De lá para
cá, os trotes só estão melhorando", afirma Bastos. "Usamos o slogan "Veterano consciente
trata o bicho como gente" em cartazes que serão espalhados pela USP neste ano. Nesta campanha, o mais legal foi o fato de não termos
usado nenhuma referência à violência para
passar a mensagem pretendida", explica a estudante de publicidade Daniela Queija, 20,
uma das realizadoras da campanha 2003.
Todas essas frentes surgiram com um só objetivo: o de despertar veteranos e calouros para
uma nova forma de integração que fosse
acompanhada de consciência social e de participação ativa.
O trote solidário -que promove ações voluntárias de veteranos e calouros nos primeiros dias de aula- foi então desdobrado em
trote cidadão, trote social, trote cultural e trote
ecológico. O que não falta é criatividade para
guardar uma boa marca da entrada na universidade: desde que não seja na pele.
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