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São Paulo, segunda-feira, 03 de fevereiro de 2003

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A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

Calouros comemoram entrada na universidade com atividades de ajuda à comunidade e deixam de lado as brincadeiras que culminam em violência e morte

Trote sem medo

Tuca Vieira/Folha Imagem
Alunos de educação física da USP, que programam semana de trotes solidários


FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

Tomar um banho de óleo queimado, rastejar na lama, ficar horas amarrado em um poste ou ser obrigado a andar nu por aí certamente não são as comemorações que alguém tem em mente ao entrar na faculdade. Só que, em muitos casos, depois de ter enfrentado o pesadelo do vestibular, o bicho ainda tem de encarar esse tipo de "brincadeira", imposta por veteranos sob o disfarce de atividade de integração dos novos colegas: o trote.
Intimidados, durante muito tempo os calouros foram obrigados a aceitar certas humilhações como rito de passagem da adolescência descompromissada para a vida de estudante universitário.
Nos últimos anos, no entanto, com os registros frequentes de excessos nas práticas de trote, acumularam-se denúncias de abusos, e algumas instituições reagiram.
Em 93, a Unesp criou uma comissão de apuração dos casos de trotes violentos e a PUC proibiu a prática dentro da universidade. Nos anos seguintes, várias universidades criaram restrições e punições para veteranos que insistissem nas tais recepções de calouros nada acolhedoras. O impossível estava acontecendo: parecia o fim do trote.
Para que a brutalidade de uns não acabasse com a tradição de brincadeiras e festas -que muitos bichos esperam e gostam de encontrar nos primeiros dias de aula-, grupos de alunos de algumas faculdades buscaram, por iniciativa própria, práticas alternativas e inauguraram o trote solidário.
Apesar de tímida, essa iniciativa ganhou eco e muitos trotes foram substituídos por campanhas de doação de sangue e de arrecadação de alimentos e de roupas.
Em 98, os trotes solidários deixaram de ser iniciativas isoladas e ganharam apoio institucional. Foi nesse ano que a Fundação Educar DPaschoal deu início ao projeto Trote da Cidadania com alunos da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Tragédia
Para chegar à grande virada na história do trote no Brasil foi preciso, antes, acontecer uma tragédia. Em 99, o calouro da Faculdade de Medicina da USP Edison Hsueh foi encontrado morto na piscina da associação atlética dos alunos, no dia seguinte a um churrasco oferecido pelos veteranos. Naquele momento, a ficha caiu tanto para veteranos quanto para reitores e autoridades públicas. E, com ela, caiu também a idéia de avacalhar os novos colegas aprovados no vestibular.
Em 2000, uma pesquisa da Fundação Educar DPaschoal apontava que 54% das universidades brasileiras já praticavam o trote solidário.
Nesse ano, também surgiram disque-denúncia e campanhas na internet, na UNE e no metrô. A reitoria da USP encomendou uma campanha ao professor Dorinho Bastos, 51, da Faculdade de Publicidade e Propaganda, que foi realizada por alunos do curso e espalhada pelo campus. A iniciativa já está em sua terceira edição. "Ela surgiu como uma proposta da reitoria, que queria acabar com o trote. De lá para cá, os trotes só estão melhorando", afirma Bastos. "Usamos o slogan "Veterano consciente trata o bicho como gente" em cartazes que serão espalhados pela USP neste ano. Nesta campanha, o mais legal foi o fato de não termos usado nenhuma referência à violência para passar a mensagem pretendida", explica a estudante de publicidade Daniela Queija, 20, uma das realizadoras da campanha 2003.
Todas essas frentes surgiram com um só objetivo: o de despertar veteranos e calouros para uma nova forma de integração que fosse acompanhada de consciência social e de participação ativa.
O trote solidário -que promove ações voluntárias de veteranos e calouros nos primeiros dias de aula- foi então desdobrado em trote cidadão, trote social, trote cultural e trote ecológico. O que não falta é criatividade para guardar uma boa marca da entrada na universidade: desde que não seja na pele.


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