São Paulo, Segunda-feira, 08 de Março de 1999
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Quando as mulheres sofrem por nós

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Ninguém ama Beth Gibbons, ou pelo menos ela quer que acreditemos nisso. Beth Gibbons canta no Portishead, porta-voz máximo do lirismo pós-tudo. Ela sofre em CD e vídeo, vaga em meio a uma bruma de guitarras, loops, sentimentos desperdiçados.
As canções do Portishead nos remetem a noites de álcool e desilusão, quando nada dá certo e o sangue ferve nas veias. Música feita por e para quem sofre.
PJ Harvey é inglesa e pesa menos de 45 quilos. Na melhor tradição da norte-americana Billie Holiday, faz da carreira uma espécie de auto-imolação pública. Anoréxica, drogada, um poço de angústia inversamente proporcional a sua pouca idade.
A gravadora chegou a rejeitar o último álbum de PJ por causa do estado de depaupério total dela e de sua música. O lançamento teve de ser adiado. Os lábios intermináveis de PJ estão a serviço da autodestruição.
Nina Persson é uma saudável jovem sueca que canta como uma valquíria. Sua banda, o Cardigans, oscila entre o bubblegum mais simplório (caso do mega-sucesso "Lovefool") e texturas abrasivas como a do disco mais recente, "Gran Turismo".
Nina sabe dar nó, com a língua, em um cabinho de cereja, truque celebrizado pela série de TV "Twin Peaks". Ela poderia ser um resumo do que de melhor, mais rico e inteligente o mundo desenvolvido é capaz de produzir. Mas há algo errado com Nina. Seus versos, poesia simples, falam em "ler seus lábios com medo", em gente que gostaria de ser especial, mas não consegue escapar do ordinário. Em algum ponto perdido da alma escandinava, ela sofre.
Existe praia em Newport, pequena cidade litorânea de Rhode Island, micro-Estado dos EUA, espremido entre Massachusetts, Connecticut e o mar. Mas isso não significa muito. O tempo é quase sempre desolador e, mesmo no verão, uma névoa branca e seca bloqueia a visão do céu azul.
Nesse clima de hedonismo frustrado, surgiu uma banda chamada Throwing Muses. E os Throwing Muses têm a desconcertante Kristin Hersh, que de algum modo conseguiu transformar o caos mental em que vive numa forma sofisticada de arte, em rock and roll e baladas, na falta de palavra melhor, adultas.
A loucura de Kristin não é de fachada, ela tem esquizofrenia e vive à base de remédios. Kristin sofre de verdade.
Muitas sofrem de mentira. Alanis Morissette parece dona de uma máquina que, em vez de fabricar salsichas em série, vomita letras de histeria rasa. E são tantas as impostoras que os nomes até se confundem: Fiona Apple, Natalie Imbruglia, Anne di Franco, Liz Phair (esta última, é verdade, está alguns furos acima das outras).
Em 1999, ficou para as mulheres, em boa parte, o papel de mártires de um milênio que agoniza. São elas que fazem o que Ian McCulloch dizia na letra de "Do It Clean", do Echo and the Bunnymen: "As coisas estão erradas/ As coisas estão andando errado/ Você consegue dizer isso numa canção?".
Como hoje é dia Internacional da Mulher e a vida não é só sofrimento, um brinde especial às deusas que não sofrem, pelo menos não em público. E o símbolo maior de todas elas é a formidável Debbie Harry, vocalista do Blondie, aos 53 anos de volta aos palcos e disco em forma total.
Muito gorda, sem sinal de operações plásticas, e mais decidida do que nunca a exercer o papel que alguma divindade bem-intencionada lhe reservou: fazer deste um planeta mais feliz para viver.

cd player
PLAY: Programa "El Séptimo de Caballería"
Passa na TV espanhola que pegamos a cabo, segunda-feira, por volta de 23h. Artistas do primeiríssimo time (R.E.M., Madonna, Garbage, Manic Street Preachers) tocam ao vivo e até respondem perguntas da platéia. Discreto e imperdível.

PAUSE: "Supershitty to the Max", Hellacopters
O nome é esse, não foi erro de digitação. Cinco suecos que ainda se lembram muito bem de quando o rock era feio, sujo e malvado. Há muitas bandas boas na Suécia. Um mistério.

EJECT: Declarações profundas
Gilberto Gil (Ilustrada de 5/3/99), sobre tropicalismo: "Era uma época de desconstrução de todo um conjunto de objetos culturais já estabelecidos. Era o ideário de quebrar, de romper, de descomprometer. A juventude (...) é assim. Hoje há o rap".


Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação do "Fantástico" em São Paulo


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