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MÚSICA
Ontem, palavrão hoje, palavrinha
LEANDRO FORTINO
DA REPORTAGEM LOCAL
Você pode até tentar tapar os ouvidos, mas é quase inevitável não escutar as dezenas de palavrões que
são cantados, nas rádios e na televisão todos os dias, por artistas como Marcelo D2,
a banda Charlie Brown Jr., a veterana Rita
Lee e até por um desenho animado, o rapper Dogão, um cachorro com corpo de homem criado pelo produtor Rick Bonadio, o
mesmo que revelou os grupos Mamonas
Assassinas e o próprio Charlie Brown Jr.
Nos EUA, um single com a palavra "fuck"
repetida mais de 20 vezes está na lista dos
mais vendidos.
Desde que palavras de baixo calão começaram a ser usadas em letras da música brasileira, no final dos anos 70, o sentido e o contexto delas mudaram. Se, no passado, palavrões tinham
como objetivo transgredir as duras leis de
censura impostas pela ditadura militar, hoje, eles perdem peso e passam a ser considerados gratuitos e até mesmo comuns.
"Nos tempos do tropicalismo, quando
comecei a compor, a gente não podia usar
nem "arco-íris" que neguinho da Censura
achava que era coisa de comunista. Hoje, o
palavrão deixou de ter conotação de baixo
calão, faz parte da língua viva. O brasilês é
uma das línguas mais ricas do planeta",
conta a cantora Rita Lee, 56, que está na trilha da novela "Senhora do Destino", da
Globo, com a música "Tudo Vira Bosta".
Para ela, "jovem não é besta pra gostar de
uma música exclusivamente por causa de
um palavrão sem mais."
Na linha iniciada pelo grupo/desenho
animado inglês Gorillaz, o produtor Rick
Bonadio, 35, criou recentemente o rapper
Dogão, segundo ele, feito em parceria com
nomes populares da música brasileira que
preferem se manter anônimos. No recém-lançado álbum de estréia, "Dogão É Mau",
há várias letras que se apropriam dos palavrões amplamente utilizados no rap.
"Não gosto de palavrão em música. Os
palavrões que o Dogão fala são do linguajar
do rap. Ele não tem pudor. Não existe uma
forçação em cima do palavrão", conta Rick,
que revelou o grupo santista Charlie Brown
Jr., que vendeu 500 mil cópias do CD
"Acústico MTV", do hit "Não Uso Sapato".
"O discurso do Chorão é bem rap. Mas o
trabalho do Charlie Brown Jr. não é calcado
no palavrão. Há palavrões que são gratuitos, que não fazem parte do contexto do artista, mas os deles não fogem do contexto,
pois todos sabem como é o Chorão", diz
Rick.
"As letras do Charlie Brown Jr. têm palavrões provavelmente porque o Chorão usa
muitos palavrões no cotidiano dele", afirma Elaine Della Bella, 32, programadora da
89FM de São Paulo, rádio que, mesmo nos
anos 80, nunca editou músicas com palavrões, como "Faroeste Caboclo", da Legião
Urbana, ou "Bichos Escrotos", dos Titãs.
"Quem procura audiência tem de manter
os palavrões. O ouvinte quer a música do
jeito que ela foi escrita", diz Elaine.
Rick Bonadio também foi produtor do
sucesso "Nada a Declarar", do Ultraje a Rigor, que, para criticar a falta de assunto no
rock do final dos anos 90, usava o menor
palavrão do português. "Achava que havia
uns palavrões usados de maneira apelativa,
só para garantir o refrão, como eu mesmo
falo na letra. Achei mais engraçado ainda
usar o menor palavrão, que é "cu". Ele tá ali
totalmente gratuito, mas, ao mesmo tempo, subentende-se que é para criticar", conta Roger, 47, vocalista do Ultraje.
Apesar de ter gravado a música "Filho da
Puta", em 89, Roger acha que há palavrões
gratuitos demais hoje. "Não sou contra. É
música feita para um pessoal que acha isso
normal. Só uso quando é necessário. Boceta, por exemplo, eu não consigo falar. E tem
na música dos Raimundos e do Planet
Hemp. O Charlie Brown Jr. tem coisas que
são gratuitas. Acho a música "Papo Reto"
preconceituosa."
A reportagem do Folhateen tentou falar
com algum integrante do Charlie Brown
Jr., mas foi informada, pela assessoria da
EMI, que o grupo está de férias.
Em 1982, o grupo carioca Blitz, que trazia
a cantora Fernanda Abreu e o ator/cantor
Evandro Mesquita na formação, teve a faixa "Cruel, Cruel" censurada pelo regime
militar. Para passar para o público a "agressão" que a canção sofreu, a banda manteve
a música no vinil, mas a faixa veio toda arranhada, impossível de ser ouvida. "A gente capitalizou do jeito que a gente pôde. Isso
chamou atenção para o problema da censura e também para a banda, que estava sofrendo uma agressão", conta Evandro, 52,
que se prepara para entrar em estúdio para
gravar um novo disco da Blitz, também
cheio de palavrões, ele promete.
Palavras obscenas não são sinônimo de
sucesso. Na estrada há mais de 20 anos, o
Capital Inicial nunca usou desse artifício.
"Considero que algumas letras nossas são
mais subversivas que qualquer letra que tenha palavrão. Palavrões e gírias fazem a
música envelhecer mal, mas não me incomodam. Ao terminarmos uma letra, estamos preocupados com o português correto. Somos frutos de uma geração que não
podia nem dizer merda", diz o vocalista Dinho Ouro Preto, 40.
O pioneiro
Mas o que teria influenciado Chico Buarque na primeira letra da música brasileira
que trouxe um palavrão dito com todas as
letras? "Geni e o Zepelim" surgiu em pleno
regime militar e foi alvo de censura.
O músico, compositor e produtor Carlos
Rennó tem uma teoria. "Acho que a música
americana pode ter influenciado o palavrão na música brasileira. Bob Dylan, em
1976, usou um "son of a bitch" em "Hurricane", talvez a letra mais longa já escrita.
Dylan é um grande poeta. Possivelmente
Chico conhecia a música. Grandes artistas
se influenciam de alguma maneira. Estamos falando de grandes poetas da canção."
Nesses 25 anos entre "Geni e o Zepelim" e
"Dogão É Mau", pode-se até considerar
que houve um progresso na questão do
moralismo, como defende o jornalista, crítico musical e escritor Tárik de Souza. "O
uso de palavrões são um avanço na sociedade, para acabar com a hipocrisia. Hoje, a
garotada também fala. Não existe mais isso, de "não fale palavrão, filho". A sociedade
mudou. Na TV, nas novelas, há palavrão. É
uma coisa que foi liberada aos poucos."
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