![]() |
São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003
![]() |
![]() |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Mundo sinistro
DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Reféns do próprio meio
e da história brasileira, os milhares de
garotos que trabalham
para o tráfico de drogas no país formam um
exército invisível cujas
baixas viram curvas de
gráficos ou índices de mortalidade juvenil. Uma realidade sinistra. Folha - Como vocês entraram para o tráfico? Luiz - Minha história foi totalmente diferente. Eu queria mesmo era trabalhar.
Mas como? Se, pra quem estudou, já está
difícil, imagina pra nós que não temos
nem isso. Eu não tenho estudo. Eu queria
ser alguém na vida, mas, como não estou
conseguindo, meu meio de trabalho é esse mesmo. Não posso ficar andando duro, tenho minhas coisas para comprar,
uma roupa maneira. Pô, tenho um menor [filho] para vir aí, tenho que sustentar o menor. Folha - Vocês não têm medo? Luiz - Não há vitória sem luta e nós estamos lutando para ter o nosso. Eles [os policiais] não lutam para ter o deles? Então,
nós também lutamos para ter o nosso. Folha - E o que você quer ter? Folha - Quanto vocês tiram em um mês
de trabalho? Folha - Como é o trabalho? Folha - O tráfico faz alguma coisa pela comunidade? Luiz - A gente ajuda porque a gente não
sabe o dia de amanhã. Aqui a gente depende deles pra se esconder dos homens
[polícia]. Folha - Qual era o sonho de vida de vocês
antes do tráfico? Luiz - Só queria arranjar um trabalho
que desse para me sustentar e minha família. Mas vi que não dava. Não tenho
pai, ele morreu, era bandido. Minha família toda veio do crime mesmo. Se eu
pudesse ter um meio de vida melhor, ia
ser totalmente diferente. Falo pra senhora, um trabalhador pode ganhar R$ 240
por mês. É um dinheiro mais suado que o
nosso e dura mais do que o nosso. Porque a gente gasta mesmo. Folha - Gostam do que fazem? Folha - Do que você mais gosta? Folha - As pessoas pensam que quem trabalha no tráfico é gente ruim. O que vocês
acham? Luiz - Peraí. Não é bem assim. Já disseram que o coração de vagabundo é na sola do pé. E é mesmo. Mas sendo que é
com quem é ruim conosco. Com quem
não é nós vamos ser bons porque ninguém aqui tem coração de pedra. Só vou
ser ruim com quem é ruim comigo ou
com a minha família. Vejo a vida aqui
dentro da comunidade, tanta gente que
precisa de uma ajuda do governo e eles
esquecem de quem mora dentro de uma
favela. Essas pessoas da favela só são vistas na hora de votar. Quando é pra votar,
eles se lembram da gente. Vem cesta básica de montão. Dentro da favela nós precisamos de muito mais do que isso. Cesta
básica, a gente corre atrás e consegue dinheiro pra comprar comida. A gente precisa é de estrutura. Folha - E de quem é a culpa disso? Luiz - Ah, é do governo. Sabe por quê?
Porque tem muito lugar e terreno que
poderia ser cedido pro pessoal fazer sua
casa, mas isso não acontece. Esculacham
o ser humano. Quando os caras do governo morrerem, vão feder igual a nós. Eles
acham que são melhores só porque têm
dinheiro. E dinheiro não é tudo nessa vida. Folha - Vocês pretendem seguir carreira
no tráfico? Luiz - Eu só não pretendo se conseguir
alguma coisa melhor. Folha - Vocês andam armados o tempo
inteiro? Folha - Já mataram muita gente? José - Bagulho de X-9 [dedo-duro] fica
mais doido. Mato mesmo. Luiz - Eu já tive que arrancar a cabeça de
um com uma faca. Primeiro nós cortamos ele vivo e depois arrancamos a cabeça dele. Folha - Por que tem de matar desse jeito? Folha - Você lembra como foi a primeira
vez que você matou? José - O meu já foi diferente. O moleque
andava conosco, convivia conosco, mas
falava tudo pros cana. Aí nós descobrimos e ficamos boladão [com raiva], tá ligado? Aí fui lá e matei o moleque. Dei logo um tiro na cara dele. Folha - Você pensou nisso depois? Luiz - Ninguém sabe, mas, depois da
primeira vez que eu matei, sonhei com o
cara. Fiquei sonhando com ele. Fiquei
com o maior pesadelo. Fiquei mal, cheguei a ficar com febre. Mas depois passou. Hoje já matei mais de 20. Folha - Você se acostumou? José - É maneiro. Nós pegamos mesmo,
fuzilamos mesmo. Folha - Vocês acham que vão morrer trabalhando? Luiz - Hoje tá tudo tranquilo, eu estou
desarmado porque vim conversar. Mas,
se a polícia aparece aí... Folha - Você acha que a situação de vocês
pode mudar? Folha - O que você acha que ele poderia
fazer por vocês? Luiz - Olha, esse relógio eu roubei de um
cara lá na pista. Eles têm como arranjar
mais do que a gente. Eles têm seguro pro
carro deles, pra quando são roubados.
Agora eu não tenho seguro nem pra minha vida. Nem sei se algum dia poderei
ser enterrado como uma pessoa digna ou
como um indigente. Ou ainda meu corpo nem aparecer, como eu mesmo já fiz
vários corpos desaparecerem. O governo
influi muito nas pessoas serem ruins. Eu
sou bolado mesmo com o governo. Essa
Benedita aí, se eu encontrasse com ela,
que é preta que nem eu, iria fazer ela ficar
branca de tanto terror que eu ia botar nela. Folha - Por que você não gosta dela? Folha - Até quando vocês estudaram? Folha - Se alguém oferecesse a vocês um
emprego normal para ganhar a mesma
grana que vocês ganham aqui, vocês trocariam? José - Ah, depende. Se fosse um emprego onde eu não fosse tratado que nem cachorro, sim. Se ninguém me esculachasse, eu trocava. Porque, aqui, os amigos
são de fortalecer mesmo, graças a Deus. Folha - Vocês acreditam em Deus? Luiz - Eu não acredito em macumba,
não. Acredito em Deus. Macumba existe
mesmo. Mas Deus sempre vai estar comigo. Sempre vai estar no meu coração. Folha - E você acha que Deus está ao seu
lado até quando você mata? |
![]() |