UOL


São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mundo sinistro

João Wainer/Folha Imagem
"Não é questão de falar, mas nós somos sinistros mesmo, nós mete bala mesmo"


DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Reféns do próprio meio e da história brasileira, os milhares de garotos que trabalham para o tráfico de drogas no país formam um exército invisível cujas baixas viram curvas de gráficos ou índices de mortalidade juvenil. Uma realidade sinistra.
Nem culpados nem inocentes, eles vivem um cotidiano sob extrema tensão, à espera da polícia, de facções inimigas, do X-9 (dedo-duro) ou da mancada que pode fazê-los provar do mesmo aço que já dispararam outras vezes. "Eu gosto de matar. Vacilou? O crime é o crime", assume um deles.
O Folhateen conversou com 15 garotos, que exercem variadas funções na hierarquia do tráfico, durante suas atividades de rotina nas próprias comunidades onde vivem para saber como eles encaram o trabalho no tráfico, o dinheiro, a família, a polícia, o medo e a morte. Entre eles, de camiseta, bermudão e chinelo, estavam Luiz (nome fictício), 16, que é soldado do tráfico desde os 13, e José (nome fictício), 14 -que deu entrevista com um rifle russo AK 47 a tiracolo, arma que usa desde os 12. Detalhe: o comprimento do rifle se estendia por mais da metade de seu corpo. Leia, a seguir, trechos da entrevista. (FERNANDA MENA)

Folha - Como vocês entraram para o tráfico?
José -
Entrei porque tudo o que eu pedia pra minha mãe ela me jogava na cara. E como é que eu vou ficar? Dependendo da minha mãe? Eu não.

Luiz - Minha história foi totalmente diferente. Eu queria mesmo era trabalhar. Mas como? Se, pra quem estudou, já está difícil, imagina pra nós que não temos nem isso. Eu não tenho estudo. Eu queria ser alguém na vida, mas, como não estou conseguindo, meu meio de trabalho é esse mesmo. Não posso ficar andando duro, tenho minhas coisas para comprar, uma roupa maneira. Pô, tenho um menor [filho] para vir aí, tenho que sustentar o menor.
Já trabalhei em obra e de marrequinho, que empurra carrinho de compra das senhoras do supermercado até em casa. Aí me mandaram embora com 12 anos porque não podia mais empregar menor. Depois de um tempo, comecei a roubar. E depois entrei pro tráfico. Porque ficar na pista roubando é mais perigoso do que ficar na boca dentro da favela. Agora fico aqui mesmo, dou tiro nos polícias mesmo e o bagulho é sério.

Folha - Vocês não têm medo?
José -
Nossa noite é criminal mesmo. Se for acontecer alguma coisa com a gente, vai acontecer. Não dá pra prever. Se der para levar até mais pra frente, se a vida levar a gente mais adiante, melhor.

Luiz - Não há vitória sem luta e nós estamos lutando para ter o nosso. Eles [os policiais] não lutam para ter o deles? Então, nós também lutamos para ter o nosso.

Folha - E o que você quer ter?
Luiz -
Quero ter a minha casa independente. Quero ter o que é meu. É pouco, mas a gente vai lutando. Não fumo, não cheiro, então meu dinheiro vai ser usado em outras coisas.

Folha - Quanto vocês tiram em um mês de trabalho?
José e Luiz -
Um barão, um barão e quinhentos [R$ 1.500].

Folha - Como é o trabalho?
José -
Temos equipes que se revezam. Fico na boca vendendo. Aí vem outra equipe e ficamos de lazer, de folga. Damos um rolé no baile.

Folha - O tráfico faz alguma coisa pela comunidade?
José -
Depende. Às vezes, sim. Tem uns moradores que fecham [apóiam] conosco e tem outros que querem mais é atrasar a gente. Os que fecham conosco, se precisar de uma coisa, de dinheiro pra um remédio, a gente dá.

Luiz - A gente ajuda porque a gente não sabe o dia de amanhã. Aqui a gente depende deles pra se esconder dos homens [polícia].

Folha - Qual era o sonho de vida de vocês antes do tráfico?
José -
Ser jogador de futebol.

Luiz - Só queria arranjar um trabalho que desse para me sustentar e minha família. Mas vi que não dava. Não tenho pai, ele morreu, era bandido. Minha família toda veio do crime mesmo. Se eu pudesse ter um meio de vida melhor, ia ser totalmente diferente. Falo pra senhora, um trabalhador pode ganhar R$ 240 por mês. É um dinheiro mais suado que o nosso e dura mais do que o nosso. Porque a gente gasta mesmo.

Folha - Gostam do que fazem?
José -
Eu gosto, gosto muito.

Folha - Do que você mais gosta?
José -
Quando nós estamos metendo bala nos canas [policiais]. Eles pedem pelo amor de Deus, e nós colocamos pertinho mesmo, para matar. Isso é consequência da vida. Uns amigos são baleados, outros morrem. Não é questão de falar, mas nós somos sinistros mesmo, nós mete bala mesmo.

Folha - As pessoas pensam que quem trabalha no tráfico é gente ruim. O que vocês acham?
José -
Não é nada, rapá. Pode tirar por mim aqui. Estou falando com você com respeito.

Luiz - Peraí. Não é bem assim. Já disseram que o coração de vagabundo é na sola do pé. E é mesmo. Mas sendo que é com quem é ruim conosco. Com quem não é nós vamos ser bons porque ninguém aqui tem coração de pedra. Só vou ser ruim com quem é ruim comigo ou com a minha família. Vejo a vida aqui dentro da comunidade, tanta gente que precisa de uma ajuda do governo e eles esquecem de quem mora dentro de uma favela. Essas pessoas da favela só são vistas na hora de votar. Quando é pra votar, eles se lembram da gente. Vem cesta básica de montão. Dentro da favela nós precisamos de muito mais do que isso. Cesta básica, a gente corre atrás e consegue dinheiro pra comprar comida. A gente precisa é de estrutura.

Folha - E de quem é a culpa disso?
José -
Do governo.

Luiz - Ah, é do governo. Sabe por quê? Porque tem muito lugar e terreno que poderia ser cedido pro pessoal fazer sua casa, mas isso não acontece. Esculacham o ser humano. Quando os caras do governo morrerem, vão feder igual a nós. Eles acham que são melhores só porque têm dinheiro. E dinheiro não é tudo nessa vida.

Folha - Vocês pretendem seguir carreira no tráfico?
José -
Eu pretendo.

Luiz - Eu só não pretendo se conseguir alguma coisa melhor.

Folha - Vocês andam armados o tempo inteiro?
José -
Claro, a gente é soldado!

Folha - Já mataram muita gente?
Luiz -
Eu já matei três polícia.

José - Bagulho de X-9 [dedo-duro] fica mais doido. Mato mesmo.

Luiz - Eu já tive que arrancar a cabeça de um com uma faca. Primeiro nós cortamos ele vivo e depois arrancamos a cabeça dele.

Folha - Por que tem de matar desse jeito?
José -
Pra os outros moradores verem que não estamos de bobeira. Pra eles pararem de "xisnovar" [dedurar] nós.

Folha - Você lembra como foi a primeira vez que você matou?
Luiz -
Dei uma facada no pescoço de um cara aí.

José - O meu já foi diferente. O moleque andava conosco, convivia conosco, mas falava tudo pros cana. Aí nós descobrimos e ficamos boladão [com raiva], tá ligado? Aí fui lá e matei o moleque. Dei logo um tiro na cara dele.

Folha - Você pensou nisso depois?
José -
Pensei nada.

Luiz - Ninguém sabe, mas, depois da primeira vez que eu matei, sonhei com o cara. Fiquei sonhando com ele. Fiquei com o maior pesadelo. Fiquei mal, cheguei a ficar com febre. Mas depois passou. Hoje já matei mais de 20.

Folha - Você se acostumou?
Luiz -
Eu gosto de matar. Já sofri e sei que um dia vou sofrer pior. Vacilou? O crime é o crime.

José - É maneiro. Nós pegamos mesmo, fuzilamos mesmo.

Folha - Vocês acham que vão morrer trabalhando?
José -
Ah, eu não sei o dia de amanhã, não. Neste momento, eu posso estar aqui falando contigo. Aí, alguém inventa que eu estava de X-9, e os caras vão lá em casa e me matam.

Luiz - Hoje tá tudo tranquilo, eu estou desarmado porque vim conversar. Mas, se a polícia aparece aí...

Folha - Você acha que a situação de vocês pode mudar?
Luiz -
Vou falar pra você que acompanhei na televisão as eleições e tenho esperança de que o Lula vá ajudar a gente. A não ser que, quando ele estiver lá, o poder suba à cabeça e ele não faça nada.

Folha - O que você acha que ele poderia fazer por vocês?
Luiz -
Ajudar nas favelas. Porque quem não tem tá tudo na pista querendo arrumar. A classe média já tá bem ajudada. Nós queremos só o que eles já têm. Mas aí eles reagem quando a gente faz um assalto. Aí nós temos que dar tiro mesmo. Se todo brasileiro pobre tivesse um salário digno que desse para sustentar a família, não teria mais assalto. Só que sempre existe a ganância...

Luiz - Olha, esse relógio eu roubei de um cara lá na pista. Eles têm como arranjar mais do que a gente. Eles têm seguro pro carro deles, pra quando são roubados. Agora eu não tenho seguro nem pra minha vida. Nem sei se algum dia poderei ser enterrado como uma pessoa digna ou como um indigente. Ou ainda meu corpo nem aparecer, como eu mesmo já fiz vários corpos desaparecerem. O governo influi muito nas pessoas serem ruins. Eu sou bolado mesmo com o governo. Essa Benedita aí, se eu encontrasse com ela, que é preta que nem eu, iria fazer ela ficar branca de tanto terror que eu ia botar nela.

Folha - Por que você não gosta dela?
Luiz -
Porque era ela quem mandava os policiais invadirem a favela desse jeito aí ó. Nego na cadeia é tratado que nem um cachorro. Eles são seres humanos e não podem ser tratados assim. Eles podem ser ruins, mas isso só piora tudo. Ele tem que ser ajudado pra conseguir sair e mudar de vida. Mas falo pra senhora: nego sai da cadeia com mais ódio do mundo.

Folha - Até quando vocês estudaram?
Luiz -
Até a quinta série. Mas sei ler e sei fazer contas muito bem.

Folha - Se alguém oferecesse a vocês um emprego normal para ganhar a mesma grana que vocês ganham aqui, vocês trocariam?
Luiz -
Trocaria.

José - Ah, depende. Se fosse um emprego onde eu não fosse tratado que nem cachorro, sim. Se ninguém me esculachasse, eu trocava. Porque, aqui, os amigos são de fortalecer mesmo, graças a Deus.

Folha - Vocês acreditam em Deus?
José -
É claro. Primeiramente é sempre Deus.

Luiz - Eu não acredito em macumba, não. Acredito em Deus. Macumba existe mesmo. Mas Deus sempre vai estar comigo. Sempre vai estar no meu coração.

Folha - E você acha que Deus está ao seu lado até quando você mata?
Luiz -
Ele não vai gostar, mas é preciso.


Texto Anterior: Soldados mortos
Próximo Texto: Brincando com fogo
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.