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São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

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Brincando com fogo

DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO

A escalada da violência relacionada ao tráfico de drogas vem acompanhada de outra ascensão ainda mais trágica: a do número de adolescentes inseridos nessa estrutura criminosa, que conta com hierarquia própria e bem definida.
Durante os últimos 20 anos, houve um rápido aumento do envolvimento de jovens na malha do tráfico tanto na ponta do consumo como na do varejo.
Em 1991, apenas 7,7% das infrações cometidas por adolescentes na capital carioca eram relativas a entorpecentes. Em 1998, esse percentual já havia saltado para 53,4%, de acordo com dados da 2ª Vara da Infância e da Adolescência do Rio.
E, quando o foco é nos garotos que vendem a droga, protegem a boca e trocam tiros com a polícia, a situação também é grave: desde 1996, o tráfico é o primeiro colocado na lista de infrações cometidas por jovens, segundo a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do Rio. Some-se a isso o fato de o ingresso no tráfico ser cada vez mais precoce -há registros de meninos de dez anos em atividade-e a bomba está lançada.
Quem imagina o tamanho da roubada que é trabalhar para o tráfico de drogas deve pensar que esses jovens só entram nessa obrigados por alguém. Engano. O envolvimento deles é espontâneo e farto -induzido pela curiosidade e pela promessa de status e de dinheiro fácil-, negligenciado pela sociedade e pelo Estado. Ninguém obriga diretamente ninguém a entrar nessa, a não ser as circunstâncias em que se encontra a vida de cada um.
"Desde criança, eu e meus irmãos brincávamos de boca. A gente fazia arma de brinquedo com madeira e chapinhas. Minha mãe quebrava todas elas quando via a gente brincar assim. Depois, quando cresci, quis entrar pra boca de verdade", conta Marcelo (todos os nomes de garotos envolvidos são fictícios), 15.
"Eu queria arranjar dinheiro. Aí, comecei a andar perto dos caras, a fazer favor e, então, pedi para formar [entrar para a boca]", diz Paulo, 16.
Na maior parte dos casos, esse é o caminho: os garotos que buscam o tráfico conseguem se aproximar fazendo pequenos favores a seus integrantes.
"Você vê as pessoas conseguindo as coisas e você não, porque não tem dinheiro. Aí, como você mora na favela, sabe que tem um jeito de conseguir na boca porque sabe o que os caras fazem. Aí você entra", justifica Daniel, 16.

Estrutura
Na estrutura do tráfico, a iniciação se dá na atividade de olheiro (na chamada "contenção"). Eles são os vigias que ficam em pontos estratégicos ao redor da boca, munidos de walkie-talkies ou de fogos de artifício utilizados para alertar os colegas sobre a chegada da polícia ou de grupos rivais. Nesse posto, os garotos ganham cerca de R$ 150 por semana.
"Já vi nego que tirou tempo de cadeia parado na contenção, de tanto que ficou na esquina com os fogos na mão", critica Paulo. "Para o trabalho de contenção, tem que ficar atento. Se um olheiro for pego dormindo e algum amigo morrer porque ele não viu a polícia chegar, o moleque vai ter que pagar na mesma moeda, com a própria vida", avisa Jorge, 17.
Apesar da pouca idade, esses garotos descobrem rapidinho que qualquer atividade no narcotráfico não tem nada a ver com as brincadeiras da infância.
O passo seguinte nessa hierarquia é a posição de vapor. Com uma bolsa a tiracolo e dois sacos plásticos na mão (um com pacotinhos de maconha, outro com sacolés de cocaína), o vapor é o encarregado de vender a droga. Menos arriscada, a atividade exige uma carga horária pesada: muitos meninos iniciam a venda ao meio-dia, quando a boca abre, e a encerram só depois das 4h da manhã, quando ela fecha.
"Acordo todo dia ao meio-dia para abrir a boca. À 1h [da tarde] a boca tá abrindo, todo mundo tá brotando, ganhando a sua atividade, e o tráfico começa a rolar. E vai até as 5h do dia seguinte", explica o vapor Diogo, 17.
Cada vapor ganha cerca de R$ 100 por carga vendida. "Cada saco desses tem 550 sacolés de pó. Custa R$ 10 cada um. Tem dias em que eu vendo três sacos cheinhos [1.650 sacolés de cocaína]", conta Carlos, 16, que trabalha como vapor há um mês. "Acho que vou subir no crime. Essa vida é uma aventura", completa.
Depois de ganhar a confiança da chefia do tráfico no local, o garoto pode começar a fazer serviços de "endolação" -o preparo da carga de droga recebida, sua mistura com outras substâncias para aumentar o rendimento e sua embalagem para a venda. Quem trabalha nessa área normalmente recebe cerca de R$ 50 por carga "trabalhada". Outro posto mais alto é o de soldado -um vigilante armado que faz a proteção da boca e ganha cerca de R$ 400 por semana.
Agora, subir mesmo, no caso, é tornar-se gerente: é este quem administra a "endolação", a venda e o lucro obtido. Geralmente, existe um gerente para cada droga vendida: um para a maconha, um para a cocaína vendida em sacolés de R$ 5, outro para a cocaína de R$ 10 e outro para a de R$ 20. Os gerentes chegam a receber até R$ 800 por semana.
"Entrei para o tráfico me enturmando e fumando maconha. Quando fui ver, já tinha largado o estudo e já tava metendo a mão nuns bagulhos aí. Comecei como vapor, depois, já fui gerente do pó de R$ 20 com 13 anos e comprei uma moto. Então, o bagulho me prendeu como uma coisa boa", relata João, 16. "Na verdade, quando era menor, pensava em ser médico. Você nunca pensa que vai cair nessa. Mas meu destino foi esse mesmo. Gosto do dinheiro no bolso, das mulheres e da moral que nós temos."
O degrau acima é ocupado pelo gerente-geral, que administra todo o varejo de droga e responde diretamente ao chamado "dono", o patrão -quem manda e desmanda em tudo e só vai à comunidade para fornecer a droga e as armas e recolher os lucros das vendas.

Crime e castigo
"A hierarquia aqui tem que respeitar. Se o patrão mandar a gente fazer alguma coisa, tem que fazer. Se eu não fizer, posso até morrer", receia Igor, 14.
Ao mesmo tempo em que cada função no tráfico tem uma grande carga de responsabilidade, ela é normalmente desempenhada em meio à fartura de drogas para o consumo dos próprios garotos. Segundo um estudo do Departamento de Ciências Sociais da Fundação Oswaldo Cruz, mais de 50% desses garotos consomem drogas em proporções que indicam dependência. Apesar da presença constante de cocaína nas bocas, a reportagem do Folhateen apurou que o consumo mais popular entre os adolescentes que trabalham para o tráfico é o dos chamados "envenenados", cigarros de maconha misturada à cocaína.
"Fumo mais de dez baseados por dia para poder tirar do estresse", afirma João. E como a cabeça não falha na hora de trabalhar? "Ah, às vezes dá umas amnésias (risos). Mas dá pra lembrar de tudo. Quem é que vai esquecer onde guardou R$ 2.000 ou onde enterrou um fuzil? Não dá. O bagulho é a maior responsa."
Se, por acaso, a sinapse falhar, qualquer vacilo é pago com penas sentenciadas pelo gerente ou pelo patrão e executadas pelos próprios colegas, que variam de uma dura ou uma surra até a morte.
"Se rachar [fizer algo errado], alguém xisnovar [delatar] e o patrão mandar, tenho que fazer. A gente se sente mal porque, muitas vezes, está tirando uma vida. Mas, pô, fazer o quê? Isso é tráfico de drogas. Entrou, não pode rachar", diz Diogo.
"Nós vê um amigo aí todo dia com nós e, devido a alguma falha, ele é morto por causa de R$ 1.000. E esse dinheiro não vale uma vida", lança João. "E você vê o cara morrendo nas mãos dos próprios amigos dele! Aí, você pensa: não tenho amigo nessa vida, não." (FERNANDA MENA)


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