São Paulo, Segunda-feira, 26 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dupla conta como é o dia-a-dia em Belgrado

France Press - 2.abr.99
Os shows de rock são uma das poucas diversões dos jovens na guerra


do enviado especial a Belgrado

Tatjana Gazibara viu Ivan Radojcic em um programa de perguntas e respostas para adolescentes, tipo "quiz show", no Studio B, a TV de Belgrado. "Achei ele metido e estúpido", diz. No dia seguinte, encontrou Ivan no ponto de ônibus.
Começou a rir da cara dele, que, incomodado, perguntou: "Tá rindo do quê?". Ela respondeu que o vira na tevê e achara engraçada a coincidência. Começaram a conversar e se transformaram no melhor amigo um do outro.
São tão cúmplices que parecem namorados. No entanto, negam que tenha pintado um clima. "Somos amigos, nunca pensamos nisso", responde Ivan, sem muita convicção. Eles usam roupas largas, num estilo meio grunge, e reclamam de ficar presos em casa à noite, por causa dos bombardeios à capital iugoslava.
Com 17 anos, os dois cursam o penúltimo ano do ensino médio -que dura quatro anos, e não três, como no Brasil. Eles falam inglês muito bem. Tatjana tem um sotaque americano impressionante. "Aprendi inglês assistindo seriados americanos e traduzindo e ouvindo músicas inglesas." Ela também fala francês.
Os dois gostam de heavy metal, mas Tatjana um pouco mais. Adoram novelas latino-americanas, uma espécie de mania nacional. Agora, por exemplo, está sendo exibida a mexicana "Esmeralda". A venezuelana "Kassandra" foi um sucesso recente. "É tão trash que é quase cool", define Ivan, que já fez alguns trabalhos como DJ.
Tatjana e Ivan comentam que não há mais festas desde que o ataque da Otan teve início, em 24 de março. Apesar de condenar o ataque, eles acreditam que a aliança militar ocidental vencerá, dividindo o país. "Poderemos ser derrotados, mas estamos orgulhosos de lutar uma guerra injusta, o poder deles é muito maior que o nosso. Podem tirar Kosovo da Iugoslávia, mas nossa cultura estará sempre ligada àquela terra", diz Ivan.
Tatjana reclama de os bombardeios terem danificado monumentos seculares da cultura sérvia, que estão em Kosovo. Ivan considera a possibilidade de lutar amedrontadora, no caso de o conflito se prolongar. Mas se diz disposto a ir.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista, feita no Sport Café, um "lugar de mauricinhos e patricinhas", numa tradução bem livre da definição que Ivan e Tatjana deram para o bar, que fica na praça da República, centro de Belgrado. (KA)

Folha - A guerra mudou muito a vida de vocês?
Tatjana -
Não temos escola e estamos o tempo todo sob pressão, achando que uma bomba pode cair perto da gente.
Ivan - Não sei o que vai acontecer amanhã. É estressante. Tenho 17 anos. Se isso continuar, em um ano irei para o Exército Iugoslavo. Não gosto de ligar a TV e ver que as pessoas estão morrendo.
Tatjana - Estão destruindo prédios públicos. Não somos ricos. Vamos ficar mais pobres.
Folha - O que vocês e seus amigos sentem sobre a guerra?
Ivan -
Estamos mais unidos. Sinto que pertenço a este lugar (à Sérvia). Não pensava nisso antes.
Tatjana - Os jovens daqui e do mundo sabem que o bombardeio é inútil. Nada será resolvido assim.
Folha - Há solução para Kosovo?
Ivan -
Não sei, mas acho que a Otan vai atingir o seu objetivo...
Tatjana - Vai separar nosso país.
Ivan - Mas não vai separar o povo sérvio. Já passamos por muitas guerras, poderemos ser derrotados agora, o poder deles é maior que o nosso. Podem tirar Kosovo da Iugoslávia, mas nossa cultura ficará ligada àquela terra. Quero levar meus filhos para ver os monastérios que estão lá há séculos.
Tatjana - Os americanos me revoltam. Eles não sabem o que é herança cultural. Não sabem nem quem foi George Washington, o primeiro presidente deles, e vêm destruir nossa herança cultural. Acertaram um monastério em Gracanica (diz-se Gratsanitsá), construído em 1321, antes mesmo de (Cristovão) Colombo chegar à América em 1492.
Folha - O Exército Iugoslavo e as forças paramilitares estão expulsando e matando civis de etnia albanesa. Vocês sabem disso? Acreditam que é verdade?
Tatjana -
Sinceramente, não sabemos o que está acontecendo lá. Só podemos julgar pela TV sérvia ou pela CNN. Não acho que estejam dando uma visão dos dois lados. Albaneses e sérvios deveriam encontrar, e poderiam, um jeito de viver em paz.
Ivan - Concordo com a Tatjana, acho que os albaneses merecem ser tratados como gente, mas acho também que a Otan não está tratando os sérvios como gente. Nós não fizemos nada errado. Se o governo está fazendo algo errado, que tentem encontrar uma solução que não fira o povo. Até os albaneses sofrem mais, porque estão tendo de deixar suas casas em Kosovo.
Folha - Ivan, se o conflito durar muito, você vai para a guerra ou tentará se esconder como alguns jovens já estão fazendo?
Ivan -
Não me sinto feliz com a possibilidade de ir lutar. Mas minha vida e a de outros pode ser um preço pequeno a pagar se as próximas gerações puderem viver em paz. É claro que tenho medo, mas também estou orgulhoso da união de nosso povo.
Tatjana - Isso vai acabar logo e você não terá de ir lá morrer (diz, num tom de proteção).
Folha - O que vocês fazem para passar o tempo em meio à guerra?
Tatjana -
De dia, vamos aos concertos de rock, mas já está ficando repetitivo. De noite, ficamos em casa, vendo TV, lendo.
Ivan - Faço um jornal escrito à mão com mais dois amigos. O nome é esquisito, mas faz sentido em sérvio: "Não o deixe aberto". Escrevemos muita besteira. Se nossos pais ou "gente normal" lerem, vão se assustar.
Folha - Vocês não são "gente normal"? Escrevem o quê?
Ivan -
Sentamos no chão na rua e escrevemos o que vemos. Se gostamos ou não de uma pessoa, se ela está mal vestida, se é estúpida. Escrevemos poesia, letras de músicas que fazemos. Qualquer coisa que passe pela nossa cabeça.
Tatjana - A gente se veste de um jeito diferente, se comporta de um modo diferente. Conversamos nos bares em inglês só para pensarem que somos estrangeiros. Nos abraçamos na rua, pulamos, cantamos. Não é para os outros verem. Somos apenas diferentes.
Folha - O que vocês vêem na TV?
Ivan -
Assistimos a novelas venezuelanas e mexicanas. Agora está passando "Esmeralda", é tão trash que quase chega a ser cool.
Tatjana - Além das novelas, adoro os seriados americanos e mexicanos, que são "completamente locos" (fala, em espanhol, imitando os personagens).
Folha - O que vocês pretendem estudar na universidade?
Ivan -
Quero estudar arte e design. Adoro o trabalho do Alexander McQueen (badalado estilista inglês, que atualmente desenha seus modelos modernos para a famosa maison Givenchy).
Tatjana - Ainda estou indecisa. Talvez medicina ou engenharia eletrônica...
Ivan - Ela tem excelentes notas. Tira um nove e reclama. Não parece (diz, rindo e provocando), mas é muito inteligente.


Texto Anterior: Entenda as justificativas dos ataques
Próximo Texto: Eles tecem o futuro: "Conversa e diálogo ainda é o que falta para os jovens hoje"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.