São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 2005

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FICÇÃO

O Folhateen convidou dois escritores para contar histórias sobre irmãos; para Fernando Bonassi, o caçula é a maior chance que temos de sobreviver à nós mesmos, e Milton Hatoum descreve pesadelo com um irmão ausente

Meu irmão caçula

Milton Hatoum

Há muito tempo aprendi a ler e escrever no colégio dos padres [. ] Vim para cá depois que meu pai foi embora. Vim para morar sozinho, refugiar-me dos vivos, dos horrores rio abaixo. Dizem que o mar é infinito, nunca vi o mar, nunca o verei. Mas vi ou pensei ter visto meu irmão caçula numa noite chuvosa.
Eu o julgava morto, e ele surgiu, que nem assombração. Não o reconheci: a última vez que me olhou, tinha cara de criança, pernas finas e arqueadas, cabelo de índio. Era do tamanho de um jaburu, e frágil como um beija-flor. Filho temporão, mimado e mirrado, meu irmão mal sabia pescar com zagaia. Medroso, fugia da chuva, das trovoadas, fechando os olhos quando o céu escurecia.
Parecia um estrangeiro, filho da cidade, não do nosso rio, que um dia amanheceu envenenado. Morto.
Teu irmãozinho, assim dizia meu pai.
Quinze anos mais velho: eu era quase um homem quando ele ainda rastejava. Fui castigado só porque o enterrei na mata, não longe da beira do rio. Cavei um buraco, soquei o diabinho lá dentro, ouvi um sufoco no fundo da terra. As formigas fizeram festa, e ele saiu de lá em carne viva, fisgado pelas mãos do meu pai.
"Seu égua", ele ralhou. "Odeias nosso sangue?".
Fui proibido de pescar e caçar. Enclausurado neste mesmo quarto, via o rio correr; as águas refletiam imagens de árvores e pássaros, arrastando-as até o mar. Um dia essas imagens sumiram e vi meu irmão e meu pai na canoa. Passaram pela janela do quarto, como um quadro em câmara lenta. Não retornaram, nunca mais.
Agora apenas ele, meu irmão, reapareceu: alto, um gigante, segurando um candeeiro. A metade do rosto iluminado, um olho morno no centro da janela.
"Eu pensava que estavas morto", balbuciei, sentado na rede.
"Tu, sim. Morreste no dia em que me enterraste vivo."
"Foi só uma brincadeira", tentei justificar.
"Não se brinca assim, muito menos com um irmão. Tua brincadeira foi um ato covarde, uma estupidez."
"O que vais fazer comigo?", eu disse.
"Vou me vingar. Já estás velho... não podes fazer nada."
"Ainda posso escrever. As palavras..."
"Para que servem as palavras?", ele riu, apagando o candeeiro e pulando para dentro do quarto.
"Para escrever este pesadelo", gritei, assustado com as rajadas de chuva e vento.
Ainda sonolento, arriado na rede, pensei no irmão ausente: no irmão que nunca tive.


Milton Hatoum é escritor, autor de "Dois Irmãos" e "Cinzas do Norte"


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