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Tragédia de amor é momento lírico em poema épico
FRANCISCO ACHCAR
especial para a Folha
No Renascimento, o projeto
de recriar os grandes gêneros da
literatura greco-latina levou
muitos poetas, em diversos países, a tentarem compor obras
no que era considerado o gênero máximo: o épico. A epopéia
(ou poema épico) é um longo
poema narrativo, de estilo elevado e assunto heróico, envolvendo grandes acontecimentos
do passado. Se os heróis e as façanhas são históricos ou míticos
esta não é uma questão significativa para a épica antiga.
Mas era um ponto importante
para Camões, que se orgulhou
de estar contando em "Os Lusíadas" (1572) uma história
grandiosa realmente ocorrida,
verdadeira, e não falsa, inventada, como as dos heróis míticos
celebrados tanto pelos gregos e
romanos da Antiguidade, quanto pelos poetas de seu tempo. A
estes teria faltado um tema da
magnitude daquele que a história recente de Portugal oferecia
a Camões: a estupenda aventura
da conquista do mar e busca de
terras distantes e ignoradas, que
ampliaram enormemente os limites do mundo então conhecido. Com uma história dessas,
com seu gênio artístico e uma
extraordinária experiência de
vida, Camões escreveu a melhor
epopéia do Renascimento.
Nela, três histórias se superpõem e se imbricam: 1) a história da viagem de Vasco da Gama
e seus marinheiros à Índia; 2) a
história de Portugal, chegando
até a época da viagem e antecipando acontecimentos posteriores a ela, e 3) a história dos
deuses que, como forças do destino, tramam e destramam a
sorte daqueles bravos portugueses que enfrentam perigos e inimigos desconhecidos para ampliar as fronteiras de seu reino e
de sua religião.
Numa longa etapa da obra
(cantos III-V), Vasco da Gama
(herói da história 1) conta ao rei
de Melinde (costa oriental da
África) a história de Portugal
(história 2). Entre os acontecimentos notáveis do passado
português, o capitão se detém
no relato dos eventos que envolveram Inês de Castro, compondo um dos mais belos episódios
do poema (canto III, estrofes
118-135). Trágico conto de
amor, é a história daquela "que
depois de ser morta foi rainha".
O fato relatado por Camões
foi registrado por cronistas da
época e pode, em seus dados
históricos, ser assim resumido.
Dona Inês, da importantíssima
família castelhana Castro, veio a
Portugal como dama de companhia da princesa Constança,
noiva de D. Pedro, herdeiro do
rei D. Afonso 4º. O príncipe
apaixonou-se loucamente pela
moça, de quem teve filhos ainda
em vida da princesa, sua esposa.
Com a morte desta, em 1435,
ter-se-ia casado clandestinamente com Inês, segundo o que
ele mesmo declarou tempos depois, quando já se tornara rei.
Talvez tal declaração, embora
solene, fosse falsa; é fato, porém,
que o príncipe rejeitou diversos
casamentos, politicamente convenientes, que lhe foram propostos depois que ficou viúvo.
A ligação entre o príncipe e
sua amante não foi bem vista
pelo rei, que temia fosse seu filho envolvido em manobras
pró-Castela da família de Pérez
de Castro, pai de Inês. (Aqui é
preciso lembrar que o conflito
entre Portugal e Castela, ou seja,
a Espanha, remonta à fundação
de Portugal, que nasceu de um
desmembramento do território
castelhano e que Castela sempre
almejou reintegrar a si.) Em
conseqüência, o rei, estimulado
por seus conselheiros, decidiu-se pelo assassinato de Inês, que
foi degolada quando o príncipe
se achava caçando fora de
Coimbra, onde vivia o casal. O
crime motivou um longo conflito entre o príncipe e o pai. Depois que se tornou rei, D. Pedro
ordenou a exumação (desenterramento) do cadáver, para que
Inês fosse coroada como rainha.
Camões, que se concentra no
conflito entre o amor e os poderes perversos do mundo, não é o
único nem foi o primeiro a dar
tratamento literário à história
de Inês de Castro, mas a sua versão paira sobre todas as outras,
anteriores ou posteriores. Vários fatores concorrem para que
o episódio seja dos mais admirados de "Os Lusíadas": a pungência da história, devida tanto
à piedade que inspiram Inês e
seus filhos, quanto ao amor
constante, inconformado e revoltado de D. Pedro; a gravidade da questão envolvida, que
opõe o interesse pessoal e os interesses coletivos (a "razão de
Estado"), e, finalmente e sobretudo, o encanto lírico de que Camões cercou a figura de Inês, a
quem atribui longo e eloquente
discurso, impondo-a como um
dos grandes símbolos femininos da literatura e não só da literatura de língua portuguesa.
Francisco Achcar, autor de "Lírica e Lugar-comum" (Edusp), é professor de língua e literatura latina na Unicamp e coordenador de português do Curso e Colégio
Objetivo. Na próxima edição publicaremos
a segunda parte da interpretação da obra.
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