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      São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 2003
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PORTUGUÊS

Contos revelam ceticismo de Machado de Assis

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos temas centrais da obra de Machado de Assis é o conflito entre a essência e a aparência. Em vários de seus contos, as personagens vivem situações que põem à prova a firmeza de seus valores morais, os quais, de resto, na maior parte das vezes, se ajustam às necessidades do momento. Falta a elas consciência moral, mergulhadas que estão num mundo em que o culto da aparência e do efêmero é o caminho para o sucesso.
Em "O Enfermeiro" (do livro "Várias Histórias", 1896), é Procópio, o protagonista do conto, quem vai enfrentar um dilema moral. Após matar acidentalmente seu paciente, vê-se atormentado pela culpa e pelo medo. Para piorar a sua situação psicológica, toma conhecimento de que era herdeiro universal dos bens do falecido. Como o crime passara despercebido, o medo concedeu-lhe trégua. A culpa, mais persistente, arrefeceu diante do reconhecimento público de tudo o que fizera pelo doente. É a opinião do outro que modela a consciência.
No conto-teoria "O Espelho" (do livro "Papéis Avulsos", 1882), Machado vai mais longe: o olhar do outro é que forja a identidade. O jovem Jacobina se torna alferes e passa a ser reconhecido pelo uso da farda, que registra seu status social. Um dia se vê só -distante do olhar da platéia- e, postado diante de um espelho, não encontra sua imagem refletida; em seu lugar, apenas uma figura difusa, "sombra de sombra". Só recupera sua imagem e, ao mesmo tempo, sua existência, quando veste novamente o uniforme.
A idéia ressurge em "Teoria do Medalhão", também de "Papéis Avulsos", agora expressa de maneira menos enigmática e mais direta. Uma inusitada conversa se dá entre pai e filho no dia em que este atinge a maioridade. Preocupado com o futuro do jovem, o pai o aconselha a seguir o que considera o único caminho de sucesso: tornar-se um "medalhão". Ser um medalhão significa obter notoriedade e distinção a qualquer preço. Para que o filho alcance posição social, o pai lhe ensina -com boa dose de cinismo e de ironia- uma preciosa lição, que, segundo suas próprias palavras, vale "O Príncipe", de Maquiavel.
Cético que é, Machado parece aceitar a imperfeição moral do mundo, mas não sem a amargura que alimenta o seu sarcasmo, este tão bem expresso na frase que encerra as "Memórias Póstumas de Brás Cubas": "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha


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