São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2005

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CRÍTICA

"Jogador" tem fluência do original

IRINEU FRANCO PERPÉTUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O título não é aquele a que você está acostumado, mas não há motivo para desconfiança, pois a tradução é excelente.
Sob o nome de "Um Jogador - Apontamentos de um Homem Moço", a Editora 34 lança no Brasil o mais conciso romance de Fiódor Dostoiévski, em tradução de Boris Schnaiderman.
Schnaiderman é cultuado como um dos maiores tradutores de literatura russa para o português, e explica em seu posfácio o porquê de ter adotado uma escolha de título diferente da habitual. A língua russa não tem artigos. O título original é simplesmente "Igrok", normalmente traduzido, quer em português, quer em outros idiomas, como "O Jogador", com artigo definido. O tradutor argumenta, contudo, que o emprego do artigo definido se deve ao fato de os editores usualmente eliminarem o subtítulo da obra que ele aqui inclui, traduzindo como "Apontamentos de um Homem Moço".
"Realmente o artigo só pode ser o indefinido. Baseado nisso e no texto do romance, eu o vejo como a confissão de um jogador russo, aliás bem russo, agressivamente russo, nunca "o jogador", como personalidade genérica." Longa discussão refere-se a quanto há de Dostoiévski na vida desse "agressivamente russo" Aleksiéi Ivanovitch, instrutor dos filhos de um general que padece de paixão por sua enteada, Polina, numa fictícia estação de águas, Roletemburgo.
Sabe-se que Dostoiévski realizou viagens pela Europa Ocidental, e consumiu-se em paixões tanto pela roleta, quanto por uma Polina Súslova. Mas seria empobrecedor reduzir "Um Jogador" à categoria de "roman à clef", no qual cada personagem e evento do livro corresponderia a fatos da vida real de seu autor. Parece mais justo afirmar que Dostoiévski lançou mão de sua experiência para elaborar uma de suas mais poderosas obras. A expressão "capitalismo-cassino", tão cara a Robert Kurz, vem à mente nesta Roletemburgo em que todas as relações estão monetarizadas, e no qual a posse de papel-moeda perseguido nas mesas de jogo determina inexoravelmente a inserção e as escolhas de cada personagem.
O narrador afirma que "no catecismo das virtudes e méritos do civilizado homem ocidental, entrou historicamente, e quase na qualidade de primeira condição, a capacidade de adquirir capitais". Para além do conteúdo, entretanto, o que mais conquista no aspecto formal do "Jogador" é a escrita "conturbada" tão característica de Dostoievski, e que o aproxima tanto da literatura moderna. O ritmo da prosa, às vezes, nos lembra de seus tempos de autor de folhetim, por deixar em finais de capítulo um "suspense" que só será resolvido nas páginas seguintes.
Não custa lembrar que o escritor russo, em sua época, foi acusado de "escrever mal", por não se preocupar em repetir palavras, nem ter preciosismo nas regras gramaticais. Schnaiderman jamais incorre na tentação de "corrigir" Dostoievski, empolando a obra com tom solene que seria estranho a seu autor. O texto chega ao leitor lusófono com a mesma fluência e simplicidade de vocabulário do russo. Se o tradutor, na "língua de chegada", pode ser definido como co-autor da obra por ele vertida, então não seria exagero ver em Schnaiderman o co-autor ideal de Dostoievski.


Um Jogador
    
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (232 págs.)



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