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RODAPÉ
Ensaio sobre os atributos da coisa
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A edição brasileira de "Começo", da francesa Nathalie
Quintane, traz como subtítulo o
termo "Autobiografia". Grafada
entre parênteses, a palavra revela
toda a ambigüidade desse poema
feito de fragmentos de prosa.
As cenas evocadas por Quintane remetem, de fato, a um inventário de experiências: lembranças
de uma viagem de trem, uma
marcenaria, um pátio de escola,
uma quermesse, um animal de estimação, uma briga com a mãe.
Logo nas primeiras linhas, porém, a escrita se despersonaliza, o
olhar que testemunha se reduz a
um neutro sujeito gramatical.
As frases de Quintane descrevem estados de coisas e muitas vezes se referem à própria autora
como "ela", como se o "eu autobiográfico" também tivesse se
transformado em coisa entre coisas: "De verdade ela gosta desse
gato, por tê-lo visto, conhecido
assim 12 anos seguidos, segurado
e acariciado, levando sua comida
de manhã antes que levantassem,
tirando seus carrapatos entre
duas unhas".
Tudo é extremamente pessoal
(porque radica numa vivência intransferível), mas almeja a uma
espécie de absoluto: o ato como
puro ato, a emoção como pura
emoção, a sensação como pura
sensação. O resultado é uma fenomenologia da percepção na qual o
sujeito se constitui a partir do acúmulo de acontecimentos concretos e descontínuos.
Assim, a rotina infantil de ir à
escola se converte numa sucessão
de gestos que se esgotam no seu
acontecer: "Cinco vezes por semana margear a grade, margear
as grades, passar pela via férrea,
margear a via férrea descer, avançar na rua calma, tomar uma rua
deserta, margear as grades calmas, subir de novo a rua mais larga, virar à direita loja, chegar às
grades, quatro anos".
A estranheza provocada pela
atenção obsessiva que a autora
dedica a recortes da realidade
(odores, sabores, gestos, "qualidades intrínsecas da pele") tem
ecos de Francis Ponge, "o ancestral poético mais evidente de Nathalie Quintane", segundo observação certeira da tradutora Paula
Glenadel.
Mas a aproximação deve ser
nuançada, tanto para marcar a diferença que há entre um nome
consagrado como Ponge e essa jovem escritora francesa quanto para assinalar a singularidade de
Quintane.
O autor de "O Partido das Coisas" criou uma literatura que faz a
anatomia de entes elementares
(um molusco, uma ostra, um caramujo), assimilando poeticamente sua estrutura por meio daquilo que Camus descreveu como
"filosofia da não-significação do
mundo": um aprendizado do
olhar em que as coisas readquirem sua espessura e são um espelho da opacidade da nossa existência.
Quintane retoma esse exercício
de "desantropomorfização" em
chave autobiográfica. Ou seja, ela
trata de seres, mas seres vistos como objetos. Nesse sentido, "Começo" não é a memória de uma
pessoa, mas de um corpo -e não
seria exagerado dizer que a autora
concebe esse "eu" (que não coincide consigo mesma) como a
"máquina desejante" de Deleuze e
Guattari.
Nesse livro que nada tem de esquemático, podemos identificar
os estágios de um sujeito que vai
se apropriando do mundo e vai
sendo apropriado por ele. No início, há fragmentos (um tanto esdrúxulos) sobre corpos híbridos e
aberrações surrealistas. Aos poucos, a representação infantil de
um real indiferenciado, em que o
interno e o externo se confundem,
dá lugar a um universo feito de
formas e nomes, ao espanto de as
coisas serem como são: "Porque o
meu nariz não cresceu para dentro, é o fora que eu respiro".
O hermetismo de certas passagens pode ser irritante. Mas, colocadas lado a lado, as reflexões de
Quintane sobre o ato de urinar, a
aula de conjugação verbal ou os
horrores do mundo do trabalho
mostram que "tudo se arruma,
tudo se classifica, tudo se ordena,
tudo se imbrica, tudo se encaixa".
As próprias páginas do livro
compõem um diagrama em que
as frases se intercalam, abrindo
espaços em branco, destacando
palavras que são também itens catalogáveis. Vale para Quintane o
que Camus falou sobre Ponge:
"Começo" faz pensar num "ensaio sobre os atributos da coisa".
Começo (Autobiografia)
Autora: Nathalie Quintane
Tradução: Paula Glenadel
Editora: 7 Letras/Cosac & Naify
Quanto: R$ 22 (112 págs.)
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