São Paulo, sábado, 01 de maio de 2004

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RODAPÉ

Ensaio sobre os atributos da coisa

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A edição brasileira de "Começo", da francesa Nathalie Quintane, traz como subtítulo o termo "Autobiografia". Grafada entre parênteses, a palavra revela toda a ambigüidade desse poema feito de fragmentos de prosa.
As cenas evocadas por Quintane remetem, de fato, a um inventário de experiências: lembranças de uma viagem de trem, uma marcenaria, um pátio de escola, uma quermesse, um animal de estimação, uma briga com a mãe. Logo nas primeiras linhas, porém, a escrita se despersonaliza, o olhar que testemunha se reduz a um neutro sujeito gramatical.
As frases de Quintane descrevem estados de coisas e muitas vezes se referem à própria autora como "ela", como se o "eu autobiográfico" também tivesse se transformado em coisa entre coisas: "De verdade ela gosta desse gato, por tê-lo visto, conhecido assim 12 anos seguidos, segurado e acariciado, levando sua comida de manhã antes que levantassem, tirando seus carrapatos entre duas unhas".
Tudo é extremamente pessoal (porque radica numa vivência intransferível), mas almeja a uma espécie de absoluto: o ato como puro ato, a emoção como pura emoção, a sensação como pura sensação. O resultado é uma fenomenologia da percepção na qual o sujeito se constitui a partir do acúmulo de acontecimentos concretos e descontínuos.
Assim, a rotina infantil de ir à escola se converte numa sucessão de gestos que se esgotam no seu acontecer: "Cinco vezes por semana margear a grade, margear as grades, passar pela via férrea, margear a via férrea descer, avançar na rua calma, tomar uma rua deserta, margear as grades calmas, subir de novo a rua mais larga, virar à direita loja, chegar às grades, quatro anos".
A estranheza provocada pela atenção obsessiva que a autora dedica a recortes da realidade (odores, sabores, gestos, "qualidades intrínsecas da pele") tem ecos de Francis Ponge, "o ancestral poético mais evidente de Nathalie Quintane", segundo observação certeira da tradutora Paula Glenadel.
Mas a aproximação deve ser nuançada, tanto para marcar a diferença que há entre um nome consagrado como Ponge e essa jovem escritora francesa quanto para assinalar a singularidade de Quintane.
O autor de "O Partido das Coisas" criou uma literatura que faz a anatomia de entes elementares (um molusco, uma ostra, um caramujo), assimilando poeticamente sua estrutura por meio daquilo que Camus descreveu como "filosofia da não-significação do mundo": um aprendizado do olhar em que as coisas readquirem sua espessura e são um espelho da opacidade da nossa existência.
Quintane retoma esse exercício de "desantropomorfização" em chave autobiográfica. Ou seja, ela trata de seres, mas seres vistos como objetos. Nesse sentido, "Começo" não é a memória de uma pessoa, mas de um corpo -e não seria exagerado dizer que a autora concebe esse "eu" (que não coincide consigo mesma) como a "máquina desejante" de Deleuze e Guattari.
Nesse livro que nada tem de esquemático, podemos identificar os estágios de um sujeito que vai se apropriando do mundo e vai sendo apropriado por ele. No início, há fragmentos (um tanto esdrúxulos) sobre corpos híbridos e aberrações surrealistas. Aos poucos, a representação infantil de um real indiferenciado, em que o interno e o externo se confundem, dá lugar a um universo feito de formas e nomes, ao espanto de as coisas serem como são: "Porque o meu nariz não cresceu para dentro, é o fora que eu respiro".
O hermetismo de certas passagens pode ser irritante. Mas, colocadas lado a lado, as reflexões de Quintane sobre o ato de urinar, a aula de conjugação verbal ou os horrores do mundo do trabalho mostram que "tudo se arruma, tudo se classifica, tudo se ordena, tudo se imbrica, tudo se encaixa".
As próprias páginas do livro compõem um diagrama em que as frases se intercalam, abrindo espaços em branco, destacando palavras que são também itens catalogáveis. Vale para Quintane o que Camus falou sobre Ponge: "Começo" faz pensar num "ensaio sobre os atributos da coisa".


Começo (Autobiografia)
   
Autora: Nathalie Quintane
Tradução: Paula Glenadel
Editora: 7 Letras/Cosac & Naify
Quanto: R$ 22 (112 págs.)



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