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"OS DESAFIOS DA ESCRITA"
Chartier revela curiosidades e mudanças na leitura
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Os ensaios que Roger Chartier reúne em "Os Desafios
da Escrita" são ao mesmo tempo
interessantes e vagos.
Especialista em história da leitura, Chartier tem coisas muito curiosas a contar sobre, por exemplo, a produção de livros baratos
na França do século 18 -e de que
modo uma série de estratégias para facilitar a leitura dos clássicos,
como cortes, resumos, supressões, terminava tornando-os mais
obscuros do que eram originalmente. Ou sobre as mudanças de
pontuação nos textos de peças
teatrais -e como foi sendo construída, por atores, editores, revisores etc., parte do significado das
obras de Shakespeare e Molière.
Há também um ensaio erudito
sobre o funcionamento de uma tipografia espanhola no século 17
-e as lutas de Cervantes contra
os imitadores de seu "Dom Quixote". Chartier aponta que, depois do sucesso do primeiro volume do livro, houve quem escrevesse continuações apócrifas das
aventuras do cavaleiro andante.
Na segunda parte de "Dom Quixote", escrita anos depois, Cervantes faz seu personagem desautorizar essas imitações e mesmo
corrigir alguns erros do texto.
Um dos assuntos prediletos de
Chartier é o das transformações
que a própria forma material do
livro -volume encadernado, rolo de papel, folheto, e-book- pode exercer sobre a prática da leitura. Hábitos hoje corriqueiros como sublinhar uma frase, ou escrever anotações à margem da página, são resultado de uma longa
história e provavelmente não têm
como resistir ao advento dos
meios eletrônicos de publicação.
Mais significativo do que isso, o
conceito mesmo do que seja "livro" e "autor" não é algo imutável
no tempo. A idéia do livro como
objeto fixo, impossível de ser modificado e alterado pelas pessoas
que o manuseiam, talvez não sobreviva incólume à nova realidade tecnológica. Afinal, como diz
Chartier, o leitor diante de uma
tela se envolve numa atividade de
leitura geralmente descontínua,
buscando "a partir de palavras-chave ou rubricas temáticas o
fragmento textual do qual quer se
apoderar (um artigo em um periódico, uma informação em um
website), sem que necessariamente seja percebida a identidade e a
coerência da totalidade textual
que contém esse elemento".
É nesse ponto, contudo, que vamos entrando nas partes mais vagas do livro. Claro que especulações sobre o futuro da escrita e da
leitura são muito arriscadas, e é
melhor apresentar algumas idéias
genéricas do que decretar "o fim"
ou "o começo" disto e daquilo.
Exatamente por ser um historiador minucioso, capaz de interessar-se sobre as origens da perícia
grafológica ou dos métodos de taquigrafia, ele não prolonga muito
os questionamentos teóricos que
parece ter sido solicitado a fazer.
Os ensaios, quando abandonam
o âmbito das realidades específicas, parecem então constituir-se
mais num programa de pesquisa:
repetem várias vezes a idéia de
que a apresentação material do livro altera seu conteúdo e sua recepção pelo leitor, recorrendo
não raro aos mesmos exemplos.
Entre o texto inicial de "Os Desafios da Escrita", intitulado "Línguas e Leituras no Mundo Digital", e o último ensaio, "Morte ou
Transfiguração do Leitor?", há
muita coisa repetida.
Mas é justamente a noção de repetição que vai sendo posta em
xeque por Chartier. A idéia de que
um "mesmo" texto sobreviva a
toda a série de variações tipográficas e editoriais a que foi submetido -para não falar das traduções, resumos, paráfrases, citações- é questionada por Chartier, que tem sempre à mão algum
trecho de Jorge Luis Borges para
apimentar seus ensaios.
O mundo das imaginações borgianas -como a idéia de uma biblioteca infinita ou o famoso
"Dom Quixote" escrito por Pierre
Menard- é mais do que um manancial de exemplos para Chartier; constitui um fundamento básico, quase que um artigo de fé,
para suas pesquisas.
Nenhum tema mais borgiano,
certamente, do que a história da
leitura, os labirintos do sentido e
as relatividades da tipografia. Mas
o que, no autor argentino, era
uma ironia contra a sistematização teórica e elogio às inutilidades
e prazeres da literatura vai adquirindo ultimamente o estatuto de
verdadeiro axioma metodológico. Isso funciona bem quando estamos diante da pura pesquisa
historiográfica, mas parece um
tanto insatisfatório quando se trata de fazer considerações mais genéricas ou teóricas.
Uma teoria do detalhismo, a generalização do pormenor, a universalização da "diferença", a indiscriminação do relativo -há
todo um estilo intelectual que deve muito a Borges e que ultrapassa largamente o terreno de pesquisadores eruditos e interessantes como Chartier. Não seria inadequado lembrar que esse estilo é
fruto de uma conjuntura histórica
determinada e transitória.
OS DESAFIOS DA ESCRITA. Autor:
Roger Chartier. Tradutora: Fulvia M. L.
Moretto. Editora: Unesp. Quanto: R$ 22
(144 págs.).
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