São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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"EX-LIBRIS: CONFISSÕES DE UMA LEITORA COMUM"

O luxo doméstico das letras

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estamos diante do luxo no sentido "camp" que a nossa amiga Susan Sontag no famoso ensaio divulgou como traço característico da moderna cultura de massa: o agradável vale mais do que a verdade. É melhor ser agradável do que verdadeiro. A verdade é chata.
Daí a moeda chamada sedução. É preciso seduzir, seja como for. Seduzir, não instruir, eis o lance do mundo da TV. Mas acontece que a autora Anne Fadiman, jornalista novaiorquina, não faz parte do universo audiovisual. Ela se diz ligada à grafoesfera, ou seja, à palavra escrita.
Filha de pais escritores, papai e mamãe afeitos às letras, nasceu no meio da biblioteca. Mas, atenção: ela não me parece uma bibliófila no sentido de cultuar os livros raros. Prefere conservar um livro de edição recente pelas anotações que fez nele, ou porque recorda determinadas vivências afetivas.
Interessante é que Fadiman, talvez porque viva na maré afluente do capitalismo norte-americano, não fale do livro como valor de troca, mas só da intimidade estabelecida através deles com seus autores ou ex-possuidores.
Eu sempre fiquei intrigado com a desenvoltura dos autores norte-americanos para falarem sobre o seu próprio umbigo. "Nosotros", como dizem latino-americanos, não usufruímos desse privilégio.
A autora não se constrange diante da palavra de ordem bolada a partir dos reacionários anos 80: volvamos ao doce lar, porque a vida é a esfera doméstica, o que inclui tanto o microondas quanto livros de Shakespeare.
Somos informados: "nosso flat repleto de livros em Nova York". Os leitores brasileiros ficamos invejosos diante da sinfonia da goteira que castiga nossos alfarrábios pendurados em muquifos e espeluncas. A condição existencial de Anne Fadiman repercute evidentemente em seu estilo. Não é mais a letra que mata; ao contrário, é o espírito. "Meu marido, George Howe Colt, e eu conquistamos um ao outro por meio de livros e casamos nossas bibliotecas, assim como nós mesmos, como tive sorte com ambas as coisas".
É quase o clima de intimidade em "Casa dos Artistas" ou em "Big Brother Brasil", a radiografia proustiana da modernidade televisiva. Curioso é que Fadiman declara-se antiamericana em leitura. Só em leitura, não em política. Isso porque prefere o fracasso ao sucesso, o quixotismo à eficiência.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre"



Ex-libris: Confissões de uma Leitora Comum

   
Autora: Anne Fadiman
Tradução: Ricardo Quintana
Lançamento: Editora Zahar
Preço: R$ 23 (162 págs.)



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