São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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MÚSICA ERUDITA

Detalhes da vida pessoal e social do compositor russo são contados em livro do amigo e secretário Robert Craft

Biografia "interpreta" íntimo de Stravinski

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O compositor austríaco Arnold Schoenberg estava com 76 anos e já agonizante. Sofria, além disso, de triscedecafobia, palavra que designa o medo danado de certas pessoas pelo número 13.
Estávamos justamente na noite de um dia 13, em julho de 1951, nas imediações de Los Angeles, onde ele vivia desde 1936. Sua mulher olhou para o relógio, que estava adiantado. Ela pensou que já tivesse passado da meia-noite.
Foi até a cama do marido. Ele acabara de morrer. Eram 23h30.
O episódio foi narrado seis dias depois, também em Los Angeles, por Alma Mahler, viúva do maestro e compositor Gustav Mahler, em jantar no qual estavam presentes o maestro Bruno Walter e o compositor Igor Stravinski.
Anna Mahler, filha de Gustav e de Alma e também artista plástica, fizera a máscara mortuária de Schoenberg. Quis mostrá-la a Stravinski. Que a reverenciou entristecido. Demonstrara com sinceridade o mesmo sentimento a 14 de julho, ao ser informado da morte pelo maestro Robert Craft.
Arnold Schoenberg e Igor Stravinski respeitavam-se, admiravam-se. Mas à distância.
A tristeza de Stravinski não era previsível para o poeta W.H. Auden. Tanto que no mês seguinte, ao desembarcar de um navio em Nápoles com um grupo de amigos do compositor, Auden perguntou com um sorriso irônico a Craft: "Como foi que nosso grande homem reagiu à morte de Schoenberg? Dançou e bebeu champanhe?". Nesse conjunto de episódios, o personagem de menor pedigree artístico é Robert Craft, que é, no entanto, quem discorre sobre isso e muito mais no saboroso "Stravinski, Crônica de uma Amizade".
Não é preciso conhecer as entranhas biográficas de Stravinski para apreciar ou compreender sua música. Mas as anotações de Craft, por vezes bastante sumárias, fazem parte de um painel bem mais amplo, com um conteúdo pouco lapidado de uma espécie de sociologia mundana da cultura, aplicável aos ambientes que Stravinski frequentava e que o acolhiam com a deferência própria a um grande mestre.
Igor Stravinski (1882-1971) já estava com 66 anos quando Craft, então estudante da Julliard School, de Nova York, o conheceu. Cidadão russo, duas décadas de França e nos Estados Unidos desde 1939, ele seria por mais algum tempo um neoclássico acomodado, antes de partir, em 1953, para formas mais ousadas e atonais de composição.
Craft acompanhou de perto essas últimas etapas, como amigo, como secretário um tanto oficioso e também como maestro. Seu livro é saboroso na medida em que fornece de Stravinski uma visão íntima que as biografias mais sistemáticas geralmente não têm.
Há antes de tudo um desfilar de celebridades do pós-guerra. Por exemplo: 27 de fevereiro de 1949, almoço do compositor e sua mulher com Coco Chanel. O jantar foi com Balanchine e Nabokov. Aldous Huxley e sua mulher, Maria, são habitués dos Stravinski na Califórnia.
O Stravinski doméstico é cheio de manias curiosas. De estatura pequena, antes do desjejum faz uma hora de ioga, postando-se ao menos por dez minutos de ponta-cabeça. Ingere ovos crus. Raramente fecha as portas das gaiolas de seus pássaros. Os periquitos caminham pela mesa, defecam sobre talheres dos convidados e beliscam fagulhas de pão na ponta da língua do dono da casa.
É também um homem vaidoso, "a ponto de não sair para jantar por causa de uma espinha no nariz". Coleciona echarpes e lenços de seda. Foi certa vez surpreendido numa animada discussão com o compositor espanhol Manuel de Falla. Não falavam de música. Falavam de gravatas.
O compositor Pierre Boulez aproxima-se de Stravinski, que o preza e o respeita. Por puro registro mundano: jantam juntos em 10 de março de 1957, em companhia de Marlene Dietrich, "uma mulher à prova de rugas", nota Robert Craft. Boulez se comove em ter tão perto de si a atriz que encarnou "O Anjo Azul".
"Não é o homem mais exuberante que já conheci, mas pode ser o mais puro." De Stravinski, de volta ao hotel, depois de jantar, em Londres, nos anos 50, no apartamento do poeta T.S. Eliot, que não aparece com frequência no livro. O fato é que o compositor gosta bem mais dele do que do escritor Graham Greene, com quem jantara na véspera.
A crônica de Robert Craft demonstra o quanto era pequeno esse mundinho de personagens altamente cotados no meio artístico e cultural. Eram todos em geral muito feios e vaidosos. Mas tinham o que dizer.
Craft estava no cômodo ao lado do quarto em que Stravinski morreu, em Nova York, em 6 de abril de 1971. Foi também ele quem amparou Vera, a viúva, no serviço fúnebre norte-americano e no definitivo, em Veneza, na Itália, onde o compositor foi sepultado numa quadra reservada aos fiéis da igreja cristã ortodoxa.
Duas imensas coroas de flores: a do governo italiano e a da União Soviética. Os Estados Unidos, por um cochilo de protocolo, se esqueceram desse mimo póstumo ao compositor que morreu naturalizado norte-americano.


STRAVINSKI, CRÔNICA DE UMA AMIZADE. Autor: Robert Craft. Tradução: Eduardo Francisco Alves. Editora: Difel. Quanto: R$ 85 (722 págs.).


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