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MÚSICA ERUDITA
Detalhes da vida pessoal e social do compositor russo são contados em livro do amigo e secretário Robert Craft
Biografia "interpreta" íntimo de Stravinski
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O compositor austríaco Arnold
Schoenberg estava com 76 anos e
já agonizante. Sofria, além disso,
de triscedecafobia, palavra que
designa o medo danado de certas
pessoas pelo número 13.
Estávamos justamente na noite
de um dia 13, em julho de 1951,
nas imediações de Los Angeles,
onde ele vivia desde 1936. Sua
mulher olhou para o relógio, que
estava adiantado. Ela pensou que
já tivesse passado da meia-noite.
Foi até a cama do marido. Ele
acabara de morrer. Eram 23h30.
O episódio foi narrado seis dias
depois, também em Los Angeles,
por Alma Mahler, viúva do maestro e compositor Gustav Mahler,
em jantar no qual estavam presentes o maestro Bruno Walter e o
compositor Igor Stravinski.
Anna Mahler, filha de Gustav e
de Alma e também artista plástica, fizera a máscara mortuária de
Schoenberg. Quis mostrá-la a
Stravinski. Que a reverenciou entristecido. Demonstrara com sinceridade o mesmo sentimento a
14 de julho, ao ser informado da
morte pelo maestro Robert Craft.
Arnold Schoenberg e Igor Stravinski respeitavam-se, admiravam-se. Mas à distância.
A tristeza de Stravinski não era
previsível para o poeta W.H. Auden. Tanto que no mês seguinte,
ao desembarcar de um navio em
Nápoles com um grupo de amigos do compositor, Auden perguntou com um sorriso irônico a
Craft: "Como foi que nosso grande homem reagiu à morte de
Schoenberg? Dançou e bebeu
champanhe?". Nesse conjunto de
episódios, o personagem de menor pedigree artístico é Robert
Craft, que é, no entanto, quem
discorre sobre isso e muito mais
no saboroso "Stravinski, Crônica
de uma Amizade".
Não é preciso conhecer as entranhas biográficas de Stravinski para apreciar ou compreender sua
música. Mas as anotações de
Craft, por vezes bastante sumárias, fazem parte de um painel
bem mais amplo, com um conteúdo pouco lapidado de uma espécie de sociologia mundana da
cultura, aplicável aos ambientes
que Stravinski frequentava e que
o acolhiam com a deferência própria a um grande mestre.
Igor Stravinski (1882-1971) já estava com 66 anos quando Craft,
então estudante da Julliard
School, de Nova York, o conheceu. Cidadão russo, duas décadas
de França e nos Estados Unidos
desde 1939, ele seria por mais algum tempo um neoclássico acomodado, antes de partir, em 1953,
para formas mais ousadas e atonais de composição.
Craft acompanhou de perto essas últimas etapas, como amigo,
como secretário um tanto oficioso e também como maestro. Seu
livro é saboroso na medida em
que fornece de Stravinski uma visão íntima que as biografias mais
sistemáticas geralmente não têm.
Há antes de tudo um desfilar de
celebridades do pós-guerra. Por
exemplo: 27 de fevereiro de 1949,
almoço do compositor e sua mulher com Coco Chanel. O jantar
foi com Balanchine e Nabokov.
Aldous Huxley e sua mulher, Maria, são habitués dos Stravinski na
Califórnia.
O Stravinski doméstico é cheio
de manias curiosas. De estatura
pequena, antes do desjejum faz
uma hora de ioga, postando-se ao
menos por dez minutos de ponta-cabeça. Ingere ovos crus. Raramente fecha as portas das gaiolas
de seus pássaros. Os periquitos
caminham pela mesa, defecam
sobre talheres dos convidados e
beliscam fagulhas de pão na ponta da língua do dono da casa.
É também um homem vaidoso,
"a ponto de não sair para jantar
por causa de uma espinha no nariz". Coleciona echarpes e lenços
de seda. Foi certa vez surpreendido numa animada discussão com
o compositor espanhol Manuel
de Falla. Não falavam de música.
Falavam de gravatas.
O compositor Pierre Boulez
aproxima-se de Stravinski, que o
preza e o respeita. Por puro registro mundano: jantam juntos em
10 de março de 1957, em companhia de Marlene Dietrich, "uma
mulher à prova de rugas", nota
Robert Craft. Boulez se comove
em ter tão perto de si a atriz que
encarnou "O Anjo Azul".
"Não é o homem mais exuberante que já conheci, mas pode ser
o mais puro." De Stravinski, de
volta ao hotel, depois de jantar,
em Londres, nos anos 50, no apartamento do poeta T.S. Eliot, que
não aparece com frequência no livro. O fato é que o compositor
gosta bem mais dele do que do escritor Graham Greene, com quem
jantara na véspera.
A crônica de Robert Craft demonstra o quanto era pequeno
esse mundinho de personagens
altamente cotados no meio artístico e cultural. Eram todos em geral muito feios e vaidosos. Mas tinham o que dizer.
Craft estava no cômodo ao lado
do quarto em que Stravinski morreu, em Nova York, em 6 de abril
de 1971. Foi também ele quem
amparou Vera, a viúva, no serviço
fúnebre norte-americano e no definitivo, em Veneza, na Itália, onde o compositor foi sepultado numa quadra reservada aos fiéis da
igreja cristã ortodoxa.
Duas imensas coroas de flores: a
do governo italiano e a da União
Soviética. Os Estados Unidos, por
um cochilo de protocolo, se esqueceram desse mimo póstumo
ao compositor que morreu naturalizado norte-americano.
STRAVINSKI, CRÔNICA DE UMA
AMIZADE. Autor: Robert Craft.
Tradução: Eduardo Francisco Alves.
Editora: Difel. Quanto: R$ 85 (722 págs.).
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