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TELEVISÃO/CRÍTICA
"Senhora" ajuda a consolidar valores democráticos
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Discutir a história da ditadura militar é um serviço para a consolidação dos valores democráticos, tão escassos no Brasil. Mais ainda quando uma novela é exibida no horário nobre e pela Rede Globo.
"Senhora do Destino", nos primeiros capítulos, tem esse mérito.
Em um país sem memória, recordar a luta dos estudantes e dos
jornalistas pela liberdade e contra
a censura não é pouca coisa.
Evidentemente que ficção não é
história. A descrição dos acontecimentos de 1968, no Rio, foi realizada de forma livre. A passeata
apresentada no primeiro capítulo, a dos Cem Mil, foi em 26 de junho, já a visita da rainha Elizabeth
2ª ocorreu quatro meses depois, e
o Ato Institucional nº 5 é de 13 de
dezembro. Ao telespectador, parece que todos esses fatos ocorreram na mesma semana, ou até no
mesmo mês. Isso é compreensível, pois a novela tem uma estrutura narrativa própria e não pretende ser, pelo que foi apresentado, uma minissérie histórica.
Porém, ao falar da repressão, induz a alguns equívocos. Um deles
quando apresenta policiais militares conduzindo o jornalista preso para a Ilha das Flores. Quem levava os prisioneiros para lá eram
militares da Marinha. Depois do
AI-5 tinha mais presos sendo torturados no Centro de Informações da Marinha (Cenimar) do
que em alguma delegacia carioca.
Outra passagem certamente vai
gerar controvérsias: a do estupro
da estudante. Se também é verdade que nas passeatas de 68 não
houve nenhum caso desse tipo de
violência, dezenas de mulheres
sofreram abuso sexual nas prisões
da ditadura. E muitas estudantes
foram assassinadas nas ruas.
Outro ponto a ser destacado é a
exposição da saga da migração. O
deslocamento populacional do
Nordeste para o Sudeste, desde
1930, superou em muito a entrada
de imigrantes na região, ocorrida
fundamentalmente nos 50 anos
anteriores. Mesmo assim, as novelas sistematicamente tematizam a imigração espanhola, portuguesa e especialmente italiana.
Quantas vezes assistimos à luta
entre italianos capitalistas e italianos anarquistas? Já a saga dos
nordestinos foi ignorada, como se
não tivesse importância histórica
ou na formação da sociedade do
Sudeste. São Paulo foi sempre vista como uma cidade italiana, isso
quando numericamente a presença dos nordestinos foi sensivelmente superior. E mais estranho quando temos um presidente
da República que também foi um
pau-de-arara.
Como o ensino de história no
primeiro e segundo graus é péssimo, "Senhora do Destino" pode
acabar tendo uma enorme importância pedagógica e política. Muitos alunos vão perguntar aos seus
professores sobre a novela. E aí
caberá aos mestres utilizar o material apresentado para suscitar
discussões na sala de aula sobre
democracia, ditadura, censura,
tortura e liberdade de manifestação, entre tantos outros temas. O
mesmo já ocorreu quando, em
1992, se exibiu "Anos Rebeldes".
Se a novela tem méritos -vale
acrescentar as belas cenas gravadas no sertão, lembrando em alguns momentos os clássicos do
cinema novo-, todavia a Globo
poderia ter mais cuidado na produção. O pau-de-arara parecia
mais um caminhão levando um
grupo rumo a um piquenique sertanejo, e a cachorra Baleia, ao ser
enterrada, respirava como se estivesse correndo pela caatinga.
Contudo o momento mais
constrangedor ficou a cargo de
Marília Gabriela. A apresentadora
faz o papel de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, valente proprietária do jornal liberal "Correio da
Manhã". Dona Niomar pode ter
cometido alguns pecados na sua
vida, mas, seguramente, não merecia esse castigo tão severo.
Marco Antonio Villa, 48, historiador, é
professor do departamento de ciências
sociais da Universidade Federal de São
Carlos e autor de "Jango, um Perfil
(1945-1964)" (editora Globo)
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