São Paulo, quinta-feira, 01 de julho de 2004

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TELEVISÃO/CRÍTICA

"Senhora" ajuda a consolidar valores democráticos

MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Discutir a história da ditadura militar é um serviço para a consolidação dos valores democráticos, tão escassos no Brasil. Mais ainda quando uma novela é exibida no horário nobre e pela Rede Globo.
"Senhora do Destino", nos primeiros capítulos, tem esse mérito. Em um país sem memória, recordar a luta dos estudantes e dos jornalistas pela liberdade e contra a censura não é pouca coisa.
Evidentemente que ficção não é história. A descrição dos acontecimentos de 1968, no Rio, foi realizada de forma livre. A passeata apresentada no primeiro capítulo, a dos Cem Mil, foi em 26 de junho, já a visita da rainha Elizabeth 2ª ocorreu quatro meses depois, e o Ato Institucional nº 5 é de 13 de dezembro. Ao telespectador, parece que todos esses fatos ocorreram na mesma semana, ou até no mesmo mês. Isso é compreensível, pois a novela tem uma estrutura narrativa própria e não pretende ser, pelo que foi apresentado, uma minissérie histórica.
Porém, ao falar da repressão, induz a alguns equívocos. Um deles quando apresenta policiais militares conduzindo o jornalista preso para a Ilha das Flores. Quem levava os prisioneiros para lá eram militares da Marinha. Depois do AI-5 tinha mais presos sendo torturados no Centro de Informações da Marinha (Cenimar) do que em alguma delegacia carioca.
Outra passagem certamente vai gerar controvérsias: a do estupro da estudante. Se também é verdade que nas passeatas de 68 não houve nenhum caso desse tipo de violência, dezenas de mulheres sofreram abuso sexual nas prisões da ditadura. E muitas estudantes foram assassinadas nas ruas.
Outro ponto a ser destacado é a exposição da saga da migração. O deslocamento populacional do Nordeste para o Sudeste, desde 1930, superou em muito a entrada de imigrantes na região, ocorrida fundamentalmente nos 50 anos anteriores. Mesmo assim, as novelas sistematicamente tematizam a imigração espanhola, portuguesa e especialmente italiana.
Quantas vezes assistimos à luta entre italianos capitalistas e italianos anarquistas? Já a saga dos nordestinos foi ignorada, como se não tivesse importância histórica ou na formação da sociedade do Sudeste. São Paulo foi sempre vista como uma cidade italiana, isso quando numericamente a presença dos nordestinos foi sensivelmente superior. E mais estranho quando temos um presidente da República que também foi um pau-de-arara.
Como o ensino de história no primeiro e segundo graus é péssimo, "Senhora do Destino" pode acabar tendo uma enorme importância pedagógica e política. Muitos alunos vão perguntar aos seus professores sobre a novela. E aí caberá aos mestres utilizar o material apresentado para suscitar discussões na sala de aula sobre democracia, ditadura, censura, tortura e liberdade de manifestação, entre tantos outros temas. O mesmo já ocorreu quando, em 1992, se exibiu "Anos Rebeldes".
Se a novela tem méritos -vale acrescentar as belas cenas gravadas no sertão, lembrando em alguns momentos os clássicos do cinema novo-, todavia a Globo poderia ter mais cuidado na produção. O pau-de-arara parecia mais um caminhão levando um grupo rumo a um piquenique sertanejo, e a cachorra Baleia, ao ser enterrada, respirava como se estivesse correndo pela caatinga.
Contudo o momento mais constrangedor ficou a cargo de Marília Gabriela. A apresentadora faz o papel de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, valente proprietária do jornal liberal "Correio da Manhã". Dona Niomar pode ter cometido alguns pecados na sua vida, mas, seguramente, não merecia esse castigo tão severo.


Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (editora Globo)


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