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CONTARDO CALLIGARIS
Acabou "Celebridade"
Na sexta-feira passada, na
hora do último capítulo de
"Celebridade", estava festejando
o casamento de Alexandre e Sílvia, amigos queridos. Depois da
cerimônia e das valsas, nas conversas de mesa, já era conhecido o
desfecho: Laura matou Lineu,
Laura e Marcos morreram, Renato foi para a cadeia. Surgiram
tantas perguntas que foi preciso
entrevistar por celular alguém
que assistira ao episódio: o que
aconteceu com Ana Paula? A
Darlene, a Jacqueline? E o Cristiano, a Beatriz?
Mais tarde, na frente da casa do
Pacaembu onde acontecia a festa,
a novela foi o tema de minha conversa com os seguranças e os motoristas do "valet parking".
No sábado, novos comentários
no café onde almoçamos, no táxi
que me levava até uma livraria e
com o vendedor que lá me atendeu. À noite, com um casal de
amigos, o programa foi risoto e
reprise do último capítulo. Deu
um bom papo. Isso sem contar as
mensagens sobre o fim da novela
que os internautas iam postando
nos blogs abertos para a ocasião.
Não assisto às novelas com regularidade. Com a exceção de
"Terra Nostra" (que curti integralmente nas fitas que são distribuídas pelas lojas brasileiras dos
EUA), vejo, em média, três capítulos por mês de cada novela das
oito. É suficiente para ter uma
idéia da evolução da trama e para não ficar a ver navios quando
alguém evoca uma personagem
ou um tema da novela em curso.
O que mais me interessa (e admiro) nas novelas é sua função
nas conversas cotidianas. Acho
extraordinário que, durante meses, uma mesma história esteja
ativamente presente no imaginário da maioria.
Há os que não perdem um capítulo e mal se lembram de que se
trata de uma ficção; e há, no outro extremo do leque, os que não
conseguem mencionar a novela
sem manifestar desprezo ou condescendência. Mas, salvo considerar que a própria existência do
Brasil como nação seja um infortúnio, todos (ou quase) reconhecem que as novelas tiveram e têm
um papel crucial na unificação
do país, fornecendo narrativas
comuns do Oiapoque ao Chuí e
das favelas às mansões.
Claro, elas propõem os ideais
urbanos de consumo às massas
rurais ou desfavorecidas, assim
como, às vezes, idealizam o campo e as vilas para as massas citadinas. Mas, com isso, elas nos levam a incluir vidas diferentes no
nosso repertório de histórias possíveis.
Voltemos às conversas que escutei ou das quais participei nesses
dias. Eis uma pequena amostra
das questões levantadas.
Marcos: merecia a mesma punição que Laura? Como medir os
graus de maldade: pela (relativa)
moderação nos atos (nesse caso,
Marcos é menos culpado)? Ou pelo cinismo das motivações (nesse
caso, Laura, pelo ódio que a anima, é menos culpada)?
Beatriz: era do mal ou do bem?
Ou seja, o amor (por um parceiro
ou por um filho) pode ser uma
"desculpa"?
Daniel: estragou ou não estragou o filho, Paulo César? Será
que, quando tentamos compensar um abandono passado, estamos sobretudo comprando a absolvição de nossa culpa?
Maria Clara: tinha direito de se
aproveitar do amor de Hugo?
Ainda bem que Hugo ganhou
uma viagem a Florianópolis com
Ana Paula Arósio.
Cristiano: se ficasse sozinho, seria bem feito. Quem não tem a coragem de enxergar o amor dos
outros e de declarar o seu, que se
dane.
Vladimir: será que é verdade
que todo brasileiro quer ser anônimo? E será que ser anônimo é
condição de ser feliz? Não é uma
história que contam os famosos
para nos consolar?
Darlene: qual das duas é verdadeira, a que se alegrava com o incêndio que quase matou suas
crianças, dando-lhe um momento de primeira página? Ou a que
renuncia ao papel numa novela
de Sílvio de Abreu para cuidar
dos seus bebês? Será que há mesmo uma alternativa entre sucesso
e amor materno? Será, em suma,
que o mundo comandado pela revista "Fama" é um clube de celibatários?
Inácio e os filhos de Ana Paula:
o que é amor de mãe e de pai?
Coisa de sangue ou coisa de coração?
Explosão de papo noveleiro?
Certo, mas o fato é que, em matéria de moral, as grandes fórmulas
fracassam sempre. Na complexidade do dia-a-dia, a sabedoria
moral é feita de parábolas, de
exemplos e contra-exemplos. A
capacidade de decidir o que é justo depende da variedade de nosso
repertório de experiências e de
histórias. Ou seja, depende da riqueza de nossa cultura.
Alguns se indignaram com a
presença de Gilberto Gil na festa
conclusiva do último capítulo.
Não entendo. Acaba uma vasta
ficção que leva o povo inteiro (ou
quase) a discutir sobre os casos da
vida e sobre as incertezas morais
que os acompanham: se o ministro da Cultura não deve cantar e
tocar nessa ocasião (sendo que ele
faz isso muito bem), não sei
quando deveria.
Enfim, a quem objetasse que as
novelas vão e vêm sem constituir
nenhum repertório de narrativas
que nos sirvam para a vida, respondo com o comentário de um
internauta quando, antes de sexta, choviam palpites sobre quem
seria o assassino de Lineu. Ele escreveu: "Eu sei, foi Odete Roitman".
ccalligari@uol.com.br
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