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Antonioni criou cinema de incertezas
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Roberto Rossellini fundou a moderna escola
italiana sobre a crença
de que o cinema é a arte capacitada a captar a realidade. Foi
esse o princípio do que se chamou neo-realismo.
Quando se perguntou certa
vez a Michelangelo Antonioni
se ele negava os princípios neo-realistas, ele disse que não, que
fazia um "neo-realismo sem bicicleta" (alusão a "Ladrões de
Bicicletas, de Vittorio de Sica).
Em outras palavras, se Rossellini acreditava no poder da câmera de fixar a realidade, coube
a Antonioni introduzir uma nova questão: o que é a realidade?
Com Antonioni, a partir daí,
o cinema desloca-se decisivamente da esfera da ação -que
Rossellini já havia rarefeito-
para a do tempo. O tempo substitui francamente a ação: ele é
aquilo que faz e desfaz as coisas.
Com isso, inicia-se também
uma busca desse real, e talvez
seja ela que tenha feito de Antonioni um mestre das distâncias, aquele que mais se preocupou em captar não as pessoas,
mas o ar que existe entre elas.
Quem mais poderia filmar
aquela cena de "A Noite" (1961)
em que Jeanne Moreau, andando sozinha pela cidade, depara
com fogos de artifício? Imediatamente ela chama seu amante,
Marcello Mastroianni. Ele vai
até o local, só para constatar
que já não há fogos.
Em "O Eclipse" (1962), a Bolsa de Valores cessa a atividade
por um minuto em homenagem a um corretor que havia
morrido. Durante um minuto
não se escuta nada. Quando soa
a sineta anunciando o final, volta o ruído infernal do pregão.
A cada filme, o cineasta parece perguntar-se o que é real,
imaginário ou alucinação.
Diante das calamidades do pós-guerra, Rossellini se perguntava "por que isso acontece?".
Antonioni, mais novo, olhava
esse mesmo mundo (ou quase o
mesmo: já é uma Itália recuperada da guerra) e sua questão
era: "o que, afinal, acontece?"
Para Rossellini, católico, a
baliza desse mundo, por terrível que fosse, era Deus. Para
Antonioni, materialista, Deus
estava morto. O homem, portanto, está livre. Mas a que leva
a liberdade? À crise. Antonioni
filmou, quase sempre, crises,
momentos de passagem (inclusive passagem da vida à morte,
uma constante nada gratuita).
Depois de sua célebre trilogia, Antonioni acrescentou as
cores a seu vasto repertório de
imagens, em "O Deserto Vermelho" (1964) -lançado no
Brasil como "O Dilema de uma
Vida"-, antes de partir para o
exterior, Inglaterra, onde Vanessa Redgrave tomou o lugar
de sua ex-mulher Monica Vitti
como estrela em "Blow Up"
("Depois Daquele Beijo", 1966).
A Inglaterra de Beatles e Rolling Stones talvez lhe parecesse o lugar ideal para dar seqüência às idéias de outro mestre, Alfred Hitchcock, que em
"Janela Indiscreta" mostrara
como é delicada a linha que separa a realidade da imaginação.
O fotógrafo de "Blow Up", ao
contrário do de "Janela Indiscreta", capta a realidade com
sua câmera. Ele passa da fabulação à materialidade: tem provas do assassinato que captou.
Ou será que o crime teria sido
apenas uma idéia construída
pela montagem de imagens?
Se as dúvidas a respeito do
real prosseguiram nas décadas
seguintes, com "Profissão: Repórter" (1975) ou "Identificação de uma Mulher" (1982), até
seu último filme Michelangelo
Antonioni tratava de uma arte
capaz de se aproximar como
nenhuma outra das coisas, das
pessoas, do tempo, mas que
quanto mais chega perto, menos nítida se torna, mais instaura a incerteza. Com Antonioni, já não existem certezas.
O homem, que mesmo em
Rossellini ainda é senhor do espaço, agora tateia um mundo
que não domina, onde o sentido
já não está dado, onde é preciso
buscar, sem saber ao menos o
que buscar. A crise do homem
moderno passa por esse cinema moderno, do qual Antonioni foi um dos grandes mestres.
Veja cena e comentário sobre "Blow Up - Depois Daquele Beijo" www.folha.com.br/ilustradanocinema
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