São Paulo, quarta-feira, 01 de agosto de 2007

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Antonioni criou cinema de incertezas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Roberto Rossellini fundou a moderna escola italiana sobre a crença de que o cinema é a arte capacitada a captar a realidade. Foi esse o princípio do que se chamou neo-realismo.
Quando se perguntou certa vez a Michelangelo Antonioni se ele negava os princípios neo-realistas, ele disse que não, que fazia um "neo-realismo sem bicicleta" (alusão a "Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica). Em outras palavras, se Rossellini acreditava no poder da câmera de fixar a realidade, coube a Antonioni introduzir uma nova questão: o que é a realidade?
Com Antonioni, a partir daí, o cinema desloca-se decisivamente da esfera da ação -que Rossellini já havia rarefeito- para a do tempo. O tempo substitui francamente a ação: ele é aquilo que faz e desfaz as coisas.
Com isso, inicia-se também uma busca desse real, e talvez seja ela que tenha feito de Antonioni um mestre das distâncias, aquele que mais se preocupou em captar não as pessoas, mas o ar que existe entre elas. Quem mais poderia filmar aquela cena de "A Noite" (1961) em que Jeanne Moreau, andando sozinha pela cidade, depara com fogos de artifício? Imediatamente ela chama seu amante, Marcello Mastroianni. Ele vai até o local, só para constatar que já não há fogos.
Em "O Eclipse" (1962), a Bolsa de Valores cessa a atividade por um minuto em homenagem a um corretor que havia morrido. Durante um minuto não se escuta nada. Quando soa a sineta anunciando o final, volta o ruído infernal do pregão.
A cada filme, o cineasta parece perguntar-se o que é real, imaginário ou alucinação. Diante das calamidades do pós-guerra, Rossellini se perguntava "por que isso acontece?". Antonioni, mais novo, olhava esse mesmo mundo (ou quase o mesmo: já é uma Itália recuperada da guerra) e sua questão era: "o que, afinal, acontece?"
Para Rossellini, católico, a baliza desse mundo, por terrível que fosse, era Deus. Para Antonioni, materialista, Deus estava morto. O homem, portanto, está livre. Mas a que leva a liberdade? À crise. Antonioni filmou, quase sempre, crises, momentos de passagem (inclusive passagem da vida à morte, uma constante nada gratuita).
Depois de sua célebre trilogia, Antonioni acrescentou as cores a seu vasto repertório de imagens, em "O Deserto Vermelho" (1964) -lançado no Brasil como "O Dilema de uma Vida"-, antes de partir para o exterior, Inglaterra, onde Vanessa Redgrave tomou o lugar de sua ex-mulher Monica Vitti como estrela em "Blow Up" ("Depois Daquele Beijo", 1966).
A Inglaterra de Beatles e Rolling Stones talvez lhe parecesse o lugar ideal para dar seqüência às idéias de outro mestre, Alfred Hitchcock, que em "Janela Indiscreta" mostrara como é delicada a linha que separa a realidade da imaginação.
O fotógrafo de "Blow Up", ao contrário do de "Janela Indiscreta", capta a realidade com sua câmera. Ele passa da fabulação à materialidade: tem provas do assassinato que captou. Ou será que o crime teria sido apenas uma idéia construída pela montagem de imagens?
Se as dúvidas a respeito do real prosseguiram nas décadas seguintes, com "Profissão: Repórter" (1975) ou "Identificação de uma Mulher" (1982), até seu último filme Michelangelo Antonioni tratava de uma arte capaz de se aproximar como nenhuma outra das coisas, das pessoas, do tempo, mas que quanto mais chega perto, menos nítida se torna, mais instaura a incerteza. Com Antonioni, já não existem certezas.
O homem, que mesmo em Rossellini ainda é senhor do espaço, agora tateia um mundo que não domina, onde o sentido já não está dado, onde é preciso buscar, sem saber ao menos o que buscar. A crise do homem moderno passa por esse cinema moderno, do qual Antonioni foi um dos grandes mestres.

Veja cena e comentário sobre "Blow Up - Depois Daquele Beijo" www.folha.com.br/ilustradanocinema


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