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Análise
Duplo adeus marca fim de era
Diretor de "A Noite" apostou nos tempos mortos para retratar o mal-estar burguês em seus filmes
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Uma segunda-feira que
registra a desaparição
de Ingmar Bergman e
de Michelangelo Antonioni não
é um dia de luto apenas para os
cinéfilos. A morte sucessiva
destes dois gigantes marca
também o fim de um tempo, especificamente o século 20, mas
não de seus problemas.
Oriundos de uma mesma geração e alçados à cena pública
quase simultaneamente, os
dois diretores conseguiram
juntos levar ao cinema a transformação pela qual passava o
homem ocidental depois da
barbárie da Segunda Guerra.
Bergman o fez através das
subjetividades. Antonioni escolheu a objetividade.
A escolha da objetividade como núcleo da representação da
crise do homem moderno decorre das origens cinematográficas de Antonioni, junto aos
pioneiros do neo-realismo italiano. Passado, porém, o momento em que a proeminência
do tema social era mais relevante, ele se afirma como diretor de longas com uma visada
cujo foco se atém ao individual.
Tratava-se, agora, de prosseguir as conquistas estéticas do
neo-realismo (um modo de representação da realidade assumidamente crítico) deixando
de lado a bicicleta.
Em referência ao clássico
"Ladrões de Bicicleta", de Vittorio de Sica, Antonioni escreveu em 1958: "Hoje, que eliminamos o problema da bicicleta,
é importante ver o que há no
espírito e no coração desse homem de quem roubaram a bicicleta, como ele se adaptou, o
que sobrou nele de todas as
suas experiências".
Desde o início, estava sendo
gestada em sua obra uma nova
estética, na qual a psicologia
não se perde em discursos verbais, mas encontra lugar na forma como o diretor agencia sons
e imagens.
Os chamados tempos mortos, constantes em seus filmes,
se intensificam com a presença
de espaços vazios, modo de explicitar a situação de crise vivida por seus personagens.
A desaparição da protagonista de "A Aventura", a perambulação de Jeanne Moreau em
terrenos baldios em "A Noite" e
as imagens urbanas desertas
em "O Eclipse" são todos signos
do mal-estar moderno: o do indivíduo burguês, que, mesmo
mergulhado no conforto, na
elegância ou nas distrações da
sociedade de consumo, não
consegue mais reencontrar sua
alma ou algo equivalente que o
preencha de sentido.
Obsessão pelo deserto
Esse processo de esvaziamento se consolida ainda mais
na fase seguinte da obra de Antonioni, quando a obsessão pelo deserto é reiterada como tema ou cenário simbólico em filmes como "Deserto Vermelho", "Zabriskie Pont" e "Passageiro: Profissão Repórter".
Nesses trabalhos, Antonioni
ressignificou, aos nossos olhos,
o termo "niilismo", essa "vontade de nada/nada da vontade"
da qual as gerações Prozac/ecstasy que vieram em seguida
continuam tentando escapar.
Por isso, não soa exagerada a
definição de Glauber ao escrever que "no século 19, Michelangelo seria filósofo como Hegel e talvez tivesse a mesma importância para o mundo de então como teve o filósofo. Hoje,
substituindo a linguagem escrita pela imagem & som, Michelangelo usa o cinema como instrumento de especulação ao
mesmo tempo em que funda,
no filme, o estilo de sua moral".
Morto o artista, sua obra
prossegue viva, contaminando,
pelo modo de representar, o
olhar de outros cineastas. Todo
o Wim Wenders dos anos 70
atesta essa herança, depois
transferida para parte do cinema oriental, na obra de diretores como os chineses Wong
Kar-wai e Jia Zhang-ke, além
de Tsai Ming-liang, de Taiwan.
Nesses vínculos, não é tanto a
referência consagrada que importa e, sim, a necessidade de
mostrar que o homem moderno pode estar morto com o século 20, mas nosso mal-estar
no mundo não se prende a mudanças do calendário.
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