São Paulo, quarta-feira, 01 de agosto de 2007

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"Profissão Repórter" sintetiza linguagem do cinema moderno

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

A câmera se afasta do corpo de Jack Nicholson, deitado na cama de um hotel vagabundo em um vilarejo espanhol; passa pela janela do quarto, passeia pelo pátio onde carros estão estacionados e se detém em alguns personagens, antes de retomar seu movimento lento, quase imperceptível, para então voltar ao quarto e ao corpo do ator -cujo personagem, agora, está morto.
Essa imagem, que está nos minutos finais de "Passageiro: Profissão Repórter" (1975), tornou-se uma espécie de síntese do cinema moderno -além de fetiche de muitos cinéfilos, cineastas e técnicos, que até hoje tentam desvendar seu virtuosismo técnico (a câmera, entre outra proezas, "atravessa" uma cerca sem que haja cortes).
Mas essa imagem é emblemática não só por ser um plano-seqüência virtuoso, na grande tradição inaugurada por Orson Welles, mas principalmente por conter em si as características mais importantes do cinema moderno: a imagem que incorpora o tempo (recusando o corte da montagem) e o chamado extra-campo, ou seja, aquilo que está fora do quadro.
A "informação" mais importante desse plano para a compreensão narrativa do filme está fora da imagem. É o som do tiro que mata o personagem de Nicholson. Antonioni chegou a dizer que só criou esse plano para não precisar mostrar o assassinato: "A idéia de vê-lo morrer me aborrecia".
Um tiro que não se vê e que dá fim à vida "dupla" do personagem central, um repórter que, lá no começo do filme, assumiu a identidade de um traficante de armas. "Trama" que resume uma aflição presente até hoje em tantos filmes, mas que raramente encontrou expressão tão "precisa" -cuja força está, justamente, em sua imprecisão.

Sem medo do silêncio
Antonioni não tem medo do silêncio e do vazio, ou seja, das lacunas que fazem parte da nossa experiência de mundo, mas que o cinema, até então, recusava-se a enxergar.
Esse modo de ver se expressa em um trabalho de câmera genial, que nos obrigou a ver o cinema com novos olhos e transformou Antonioni em um cineasta de assinatura inconfundível, presente até em seus filmes mais recentes, como o criticado episódio do longa "Eros" ou o genial curta "O Olhar de Michelangelo".
Se Antonioni tivesse filmado apenas esse plano em toda sua vida, o fim de "Passageiro: Profissão Repórter" já teria justificado sua importância como cineasta. Mas a sua obra comporta muitas outras imagens marcantes que, de alguma forma, fazem parte do imaginário contemporâneo, como os corpos no deserto e as explosões fragmentadas de "Zabriskie Point" ou a névoa industrial que toma conta da imagem e faz desaparecer a atriz Monica Vitti em "Deserto Vermelho". Imagens que permanecem.


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