São Paulo, sexta-feira, 01 de setembro de 2006

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Crítica/"Carioca"

Um show apolíneo e "paulista"

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

Não há nada de superficialmente carioca no show de Chico Buarque. O título da turnê é ilusório, se compreendido como um anúncio da reiteração de clichês associados ao "estado de espírito" carioca, ao "temperamento expansivo" ou à exaltação narcísica dos encantos da Cidade Maravilhosa.
Na realidade, "Carioca" é um show bastante "paulista", construído e cerebral -quase um concerto. Deixando de lado essa dualidade provinciana, pode-se dizer que predomina no palco a face apolínea do compositor (que também tem a sua dionisíaca). Ela se impõe na concepção contida, quase minimalista que rege os ótimos arranjos, a execução e também a articulação do repertório.
As quase 30 músicas que compõem o show, cantadas sem conversas com o público, vão se abrindo como páginas de um livro. É comum em rodas de música que canções puxem canções: esta lembra "aquela" e, nessa toada, uma série musical vai se formando sem ter fim.
Em "Carioca", essa situação banal, de uma canção que sai de dentro da outra, por associações temáticas, melódicas ou de palavras, é elevada a um exercício autoral rigoroso, deixando transparecer o esforço de quem compõe uma narrativa milimétrica.
Creio que foi Antonio Carlos de Brito, o saudoso Cacaso, crítico, poeta e letrista, quem certa vez classificou a safra poética da juventude dos anos 70 como uma espécie de "poemão" geracional, composto pelos diversos poemas individuais. "Carioca" é um "poemão" de Chico.
Não, certamente, "o" poemão, mas um recorte expressivo de sua produção. E nisso, há sim, algo de propriamente carioca no show, pois Chico, afinal (como, aliás, grande parcela dos compositores brasileiros), deve muitíssimo de sua composição à riqueza musical do Rio, de Pixinguinha e Noel Rosa a Tom Jobim, passando pela Mangueira e por outras tantas derivas do samba.
Significativamente, é com "Voltei a Cantar", de Lamartine Babo, que o show é iniciado. Como tema, o Rio aparece no cenário de Helio Eichbauer e em um terço das canções -como computou Luiz Fernando Vianna, anteontem, ao apresentar "Carioca" nesta Ilustrada. A cidade, de uma maneira geral, como sugerem canções mais recentes do compositor, é cantada em tom de melancolia e desolação, em acordo com a chave maior representada pelo divisor de águas "Bye Bye Brasil".
Sim, é cada vez mais difícil cantar o Rio (ou o Brasil) que "mora no mar e sorri de tudo". A cena, então, parece dominada por um certo sabor de despedida na convivência, como se o poeta visse a musa (e o país, a cidade, a canção popular, o tempo) perder o viço, mas dela não pudesse mais se dissociar.
O clima quase frio de concerto, é pontuado, aqui e ali, pelos inevitáveis gritos de "eu-te-a-mo!" do público embevecido e por alguns números mais descontraídos, como o dueto que Chico faz, ao tamborim, como Wilson das Neves. Mas é só a partir do "bis" que a atmosfera de descontração envolve, enfim, palco e platéia. Aos aplausos, as pessoas se levantam das apertadíssimas mesas do Tom Brasil e pedem suas canções favoritas. É uma longa seqüência de saídas e voltas, na qual Chico apresenta, finalmente, um sucesso dos anos 60, "Quem Te Viu, Quem Te Vê". No enésimo retorno do cantor ao palco, José Simão passa de saída e comenta, jocoso: "Não precisava voltar de novo". Um fã especial se anima e, de pé, arrisca seu pedido: "A Banda!". É o senador Eduardo Suplicy. Não foi atendido.

CARIOCA
    Quando:
(qui., às 21h30; sex. e sáb., às 22h; dom., às 19h); até 15/10
Onde: Tom Brasil Nações Unidas (r. Bragança Paulista, 1.281, tel. 0/xx/ 11/ 2163-2000)
Quanto: entre R$ 80 e R$ 160


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