São Paulo, Sexta-feira, 01 de Outubro de 1999
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JOÃO E CAETANO

Farsa histórica, Titanic afunda em São Paulo


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Em espetáculo de repetição farsesca da história, o Titanic naufragou anteontem na cidade de São Paulo -que nem praia tem. O Titanic? Uma garatuja arquitetônica de fazer Miami corar de pejo, chamada Credicard Hall, abarrotada de VIPs, globetes, "jota quests", chiques & famosos em geral.
Os comandantes do navio? Os artistas João Gilberto e Caetano Veloso, o governador Mário Covas, o publicitário Nizan Guanaes, os caciques do cartão de crédito e do show business paulistano.
Os náufragos? A elite, a elite, a elite -e nem pense só na paulistana, que as pontes aéreas vindas do Rio e de Salvador estiveram em polvorosa nesse dia. O que se dizia é que seria um show inesquecível. Pois é...
Não havia pé-rapado na pajelança, foram mesmo paxás se engalfinhando, num deprimente (ou divertido, depende do visor) espetáculo decadentista.
A primeira conclusão, inevitável, é que a elite brasileira é grossa, ignorante. Só isso explica que as queixas legítimas -aqui nunca se critica o patrão, não é?, a família MPB sabe disso muito bem- de João tenham sido vaiadas, ao passo que o discurso demagógico de Mário Covas foi ovacionado.
Os deuses conspiraram contra aquele coliseu em festim, que, como poderia definir Caetano, ainda é construção e já parece ruína, erigida sob os escombros da decadência e da brutalização da MPB.
João Gilberto estava rouco e desafinou -!!!!- várias vezes, notadamente em "Garota de Ipanema". O mito é humano, também desafina. Mas foi a partir daí que o gênio, desgostoso de sua humanidade, dourou o factóide. Ele estava coberto de razão.
Quem estava no gargarejo relata o eco fantasmagórico; para quem ficou no fundo da platéia parecia que abomináveis homens das neves subiam e desciam, furiosos, as escadas de acesso à platéia, quebrando toneladas de copos -ao que consta, a voz de João não quebra cristais; tratava-se mesmo do coquetel no saguão, bem mais animado que o show.
A acústica do Credicard estreou como uma serpente assassina chicoteando nas colunas do Titanic. Os tablados da platéia, ocos e barulhentos, são indignos de celeiro.
Mas isso é uma coisa. É claro que, ardiloso, João desviou para questões extra-artísticas toda a atenção da parte que lhe cabia. Esperto como ninguém, evitou que toda a cidade comentasse, no dia seguinte: "João desafinou!".
E, olhe, desculpe o atrevimento, sr. João, mas, houvessem o sr. e sr. Caetano ensaiado um pouquinho -e as canções em dupla evidenciavam que não o fizeram-, teriam antevisto o desastre e não poderiam, então, posar de desavisados. Gênio ou não, paxá é sempre paxá. "O pato sou eu", reclamou João; mas quem paga o pato?
Aí é que entra Caetano Veloso, plantado feito valete no mesmo muro cor-de-rosa de sempre. Vivendo uma das grandes saias justas de sua vida, ficou mudo como um poste diante das primeiras -e espirituosas- queixas do mestre. Quando viu que a barca fazia água, desviou o empurra-empurra entre João e os donos da casa para mares menos revoltos.
Primeiro, valeu-se da vaia a João para devolver ao público a responsabilidade pelo naufrágio. Sem querer, protagonizou o segundo discurso antivaia de sua carreira musical, 31 anos depois de "É Proibido Proibir" -a mesma voz nervosa, quase histérica, do jovem tropicalista.
Tal qual cão empenhado em caçar o próprio rabo, quis se fazer pai de seu pai -de seu pai musical-, ignorando que Joãozinho é esperto o suficiente para se defender "sozinho" e refratando o animalismo de seus próprios pares (os de Caetano, mais que os do rebelde João) extramusicais.
Depois, teve o tempo do hit "Sozinho" -repousante até para os neurônios tímidos da VJ Sabrina, que passeia do axé ao João- para se acalmar e arquitetar defesa e autodefesa. E passou a mistificar.
Factóide no factóide, cimentou o muro ("não está tão ruim; tem o eco, mas as pessoas estão ouvindo"), disse que estava calmo e que João estava zangado, mas por causa da imprensa. Quer dizer que todo mundo vê o caos e os culpados são público e imprensa? Ora, que feio, seu Caetano. Verdade tropical tem limite.
Caetano se salvou na simplicidade, como quando, logo em seguida, proclamou, em pânico manso: "Quero chamar João Gilberto, espero que ele esteja aí...".
Enfim, é possível estabelecer alguma crítica musical desse tumulto todo? Difícil, já que náufragos do Titanic ainda estão agarrados a suas bóias e Caetano e João não são crooners de cruzeiro.
Mas vá lá: no pouquinho de música que passou pela casa, mesmo com ânimos tão exaltados, houve espaço para beleza às pampas. João (mesmo sem voz) e Caetano (quando se acalmava) travaram delicado duelo, entre dois dos maiores intérpretes brasileiros.
No ato de secundar o patrono, Caetano, em parte liberto do excesso de ar que infestava sua voz quando, intimidado, dividiu com o mestre e com Gilberto Gil o disco "Brasil" (81), mostrou como é nobre quando sabe ser reverente sem ter de ser didático e se deliciou até com "O Leãozinho". João, por sua vez, operou instantes parados no ar, como ao cantar "Eu Vim da Bahia", do Gil pré-tropicalista.
Os momentos de dupla, ainda que não raro cada qual fosse para um lado diferente, foram de fato antológicos, da reiteração de tribo baiana do Caymmi inicial e da "Bahia com H", de Denis Brean, aos mimos a São Paulo (mesmo após tantos maus-tratos) oferecidos na "Ronda", de Paulo Vanzolini, e na "Saudosa Maloca", de Adoniran Barbosa.
O simbolismo prevaleceu, com o ápice melancólico de os dois voltarem para um bis que ninguém queria -e que não houve, afinal. Ainda que metafórico, o espetáculo de horrores protagonizado por vários dos grandes homens da República evidenciou que vai mal das pernas este Brasil. É triste para todo mundo.


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