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JOÃO E CAETANO
Farsa histórica, Titanic afunda em São Paulo
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
Em espetáculo de repetição farsesca da história, o Titanic naufragou anteontem na cidade de São
Paulo -que nem praia tem. O Titanic? Uma garatuja arquitetônica
de fazer Miami corar de pejo, chamada Credicard Hall, abarrotada
de VIPs, globetes, "jota quests",
chiques & famosos em geral.
Os comandantes do navio? Os
artistas João Gilberto e Caetano
Veloso, o governador Mário Covas, o publicitário Nizan Guanaes,
os caciques do cartão de crédito e
do show business paulistano.
Os náufragos? A elite, a elite, a
elite -e nem pense só na paulistana, que as pontes aéreas vindas
do Rio e de Salvador estiveram
em polvorosa nesse dia. O que se
dizia é que seria um show inesquecível. Pois é...
Não havia pé-rapado na pajelança, foram mesmo paxás se engalfinhando, num deprimente
(ou divertido, depende do visor)
espetáculo decadentista.
A primeira conclusão, inevitável, é que a elite brasileira é grossa,
ignorante. Só isso explica que as
queixas legítimas -aqui nunca
se critica o patrão, não é?, a família MPB sabe disso muito bem-
de João tenham sido vaiadas, ao
passo que o discurso demagógico
de Mário Covas foi ovacionado.
Os deuses conspiraram contra
aquele coliseu em festim, que, como poderia definir Caetano, ainda é construção e já parece ruína,
erigida sob os escombros da decadência e da brutalização da MPB.
João Gilberto estava rouco e desafinou -!!!!- várias vezes, notadamente em "Garota de Ipanema". O mito é humano, também
desafina. Mas foi a partir daí que o
gênio, desgostoso de sua humanidade, dourou o factóide. Ele estava coberto de razão.
Quem estava no gargarejo relata
o eco fantasmagórico; para quem
ficou no fundo da platéia parecia
que abomináveis homens das neves subiam e desciam, furiosos, as
escadas de acesso à platéia, quebrando toneladas de copos -ao
que consta, a voz de João não quebra cristais; tratava-se mesmo do
coquetel no saguão, bem mais
animado que o show.
A acústica do Credicard estreou
como uma serpente assassina chicoteando nas colunas do Titanic.
Os tablados da platéia, ocos e barulhentos, são indignos de celeiro.
Mas isso é uma coisa. É claro
que, ardiloso, João desviou para
questões extra-artísticas toda a
atenção da parte que lhe cabia. Esperto como ninguém, evitou que
toda a cidade comentasse, no dia
seguinte: "João desafinou!".
E, olhe, desculpe o atrevimento,
sr. João, mas, houvessem o sr. e sr.
Caetano ensaiado um pouquinho
-e as canções em dupla evidenciavam que não o fizeram-, teriam antevisto o desastre e não
poderiam, então, posar de desavisados. Gênio ou não, paxá é sempre paxá. "O pato sou eu", reclamou João; mas quem paga o pato?
Aí é que entra Caetano Veloso,
plantado feito valete no mesmo
muro cor-de-rosa de sempre. Vivendo uma das grandes saias justas de sua vida, ficou mudo como
um poste diante das primeiras
-e espirituosas- queixas do
mestre. Quando viu que a barca
fazia água, desviou o empurra-empurra entre João e os donos da
casa para mares menos revoltos.
Primeiro, valeu-se da vaia a
João para devolver ao público a
responsabilidade pelo naufrágio.
Sem querer, protagonizou o segundo discurso antivaia de sua
carreira musical, 31 anos depois
de "É Proibido Proibir" -a mesma voz nervosa, quase histérica,
do jovem tropicalista.
Tal qual cão empenhado em caçar o próprio rabo, quis se fazer
pai de seu pai -de seu pai musical-, ignorando que Joãozinho é
esperto o suficiente para se defender "sozinho" e refratando o animalismo de seus próprios pares
(os de Caetano, mais que os do rebelde João) extramusicais.
Depois, teve o tempo do hit "Sozinho" -repousante até para os
neurônios tímidos da VJ Sabrina,
que passeia do axé ao João- para
se acalmar e arquitetar defesa e
autodefesa. E passou a mistificar.
Factóide no factóide, cimentou
o muro ("não está tão ruim; tem o
eco, mas as pessoas estão ouvindo"), disse que estava calmo e que
João estava zangado, mas por
causa da imprensa. Quer dizer
que todo mundo vê o caos e os
culpados são público e imprensa?
Ora, que feio, seu Caetano. Verdade tropical tem limite.
Caetano se salvou na simplicidade, como quando, logo em seguida, proclamou, em pânico
manso: "Quero chamar João Gilberto, espero que ele esteja aí...".
Enfim, é possível estabelecer alguma crítica musical desse tumulto todo? Difícil, já que náufragos do Titanic ainda estão agarrados a suas bóias e Caetano e João
não são crooners de cruzeiro.
Mas vá lá: no pouquinho de música que passou pela casa, mesmo
com ânimos tão exaltados, houve
espaço para beleza às pampas.
João (mesmo sem voz) e Caetano
(quando se acalmava) travaram
delicado duelo, entre dois dos
maiores intérpretes brasileiros.
No ato de secundar o patrono,
Caetano, em parte liberto do excesso de ar que infestava sua voz
quando, intimidado, dividiu com
o mestre e com Gilberto Gil o disco "Brasil" (81), mostrou como é
nobre quando sabe ser reverente
sem ter de ser didático e se deliciou até com "O Leãozinho".
João, por sua vez, operou instantes parados no ar, como ao cantar
"Eu Vim da Bahia", do Gil pré-tropicalista.
Os momentos de dupla, ainda
que não raro cada qual fosse para
um lado diferente, foram de fato
antológicos, da reiteração de tribo
baiana do Caymmi inicial e da
"Bahia com H", de Denis Brean,
aos mimos a São Paulo (mesmo
após tantos maus-tratos) oferecidos na "Ronda", de Paulo Vanzolini, e na "Saudosa Maloca", de
Adoniran Barbosa.
O simbolismo prevaleceu, com
o ápice melancólico de os dois
voltarem para um bis que ninguém queria -e que não houve,
afinal. Ainda que metafórico, o
espetáculo de horrores protagonizado por vários dos grandes homens da República evidenciou
que vai mal das pernas este Brasil.
É triste para todo mundo.
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