São Paulo, terça-feira, 01 de outubro de 2002

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"NOVA YORK - ANTES E DEPOIS DO ATENTADO"

Livro trilha caminho da ode de amor ao pesar doloroso

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este "Nova York - Antes e Depois do Atentado", de Sérgio Dávila, pode ser descrito com pouquíssimas palavras: maravilhoso, poético, triste... emocionante... profético. Mas prefiro defini-lo como uma ode de amor a uma cultura e à cidade que melhor expressa essa cultura (violentamente cruel e inventiva, criativa e autofágica) que é a Big Apple.
Ao mesmo tempo, essa ode passa por uma transformação impactante e vira um pesar, um pesar doloroso e confuso, quando colapsa a cultura e a cidade que a contém com os ataques de 11 de setembro. Bem, tenho que dizer que sou suspeitíssimo para fazer uma resenha sobre o trabalho de Sérgio Dávila, pelos amigos que somos e por tudo que passamos, escrevendo para esse mesmo jornal, de pontos diferentes dessa Nova York que ele descreve de uma forma tão deslumbrante e tão povoada de "characters" que às vezes parece que estamos sendo envolvidos por uma Nova York criada por uma espécie de mistura entre Paul Auster e Flaubert (e às vezes Dante).
Dávila "vive" uma nova Nova York e espreme seu sumo melhor que qualquer outro livro que eu já tenha lido a respeito da cidade onde moro praticamente desde a pós-adolescência. Exagero meu? De jeito nenhum. Mesmo na parte que ele chama de "antes", onde a cidade é descrita por um cidadão que se mete, se intromete, penetra, pentelha e cavuca os buracos e botecos da cidade em curtíssimos e poéticos textos, não me lembro de ler (nem nas inspiradíssimas crônicas de Tom Wolfe ou de Milos Foreman para o "New Yorker" na década de 70, ou nos artigos de Paulo Francis para o "Pasquim", na mesma década) textos tão objetivos e, ao mesmo tempo, passionais, pessoais e recheados de conteúdo, às vezes até profético.
Existe uma estranha personalidade dentro do Sérgio Dávila autor dessa compilação. Ele é um ator que enxerga uma situação e entende uma cena como se estivesse vendo-a através do prisma de uma personagem que depois informa ou reporta as suas experiências ao autor Sérgio Dávila.
Essa Nova York de Dávila poderia ser uma peça teatral, assim como "Esperando Godot", escrita em dois atos. Apesar de distanciados por um breve intervalo, os atos se parecem, mas se antagonizam, um sendo a sombra do outro. E não há sombra mais trágica que esse segundo ato no livro de Dávila, já que ela é a parte que descreve os ataques que derrubaram o World Trade Center e os tenebrosos dias que se seguiram.
Mas há uma enorme semelhança entre os dois atos, já que são interpretados pelo mesmo olhar tímido de alguém que sabe demais e entende que não pode transbordar suas emoções em demasia, pois escreve para um jornal e não está fazendo uma defesa de tese acadêmica. Essa estranhíssima lucidez é o que transforma um livro de experiências vividas pelo "cidadão" Dávila num depoimento em que o leitor acaba por absorver os tremores de terra que o repórter vivenciou, desde o dia em que o mundo ainda era uma enorme sitcom até a fatídica manhã da tragédia, um ícone em si, com começo e meio, mas ainda sem fim.
Dávila nos conduz pelo cotidiano nada usual de alguém que mora na cidade. Ele se coloca em situações e experimenta o gosto de eventos ainda considerados míticos pelo público em geral (como sentar ao lado de Al Pacino num restaurante ou conseguir assistir "depois de muita insistência" a uma gravação do programa de David Letterman).
Sérgio Dávila é um ser pop. Nova York, mesmo amputada, continua sendo pop. Ele é fascinado pelo mundo leve da cultura americana porque entende seu lado morbidamente pesado, escapista, terapêutico assim como os antidepressivos são meros panos quentes prestes a explodir. E é assim, por meio dessa leveza pesada, que o autor nos leva para dar um passeio que vai desde o desconfiado fascínio de um estrangeiro esperto até o mais mórbido período histórico e traduz, nesse rápido passeio, tudo aquilo que representa morar nos EUA.
Em vez de ver a cultura e a vida americana por um binóculos crítico, Dávila chafurda na lama como o melhor dos atores, nos emociona quando sua "distanciada" emoção nos mostra o que é ser impregnado com seu simbolismo teologicamente autoreferente todos os dias, o tempo todo, ensurdecedor, enlouquecedor de ouvir um God Bless América e vê-lo se transformando numa sinfonia serialista e atonal com conotações horrendas e horrendamente hegemonistas.
Eu poderia me estender por horas, sublinhando momentos sublimes, hilários e trágicos. Mas prefiro simplesmente agradecer o autor por tê-lo escrito de uma forma tão genial e tão contaminadora que seu testemunho passa a ser obrigatório para todos aqueles que tentam entender o que está acontecendo no mundo nesse momento maluco, nesse intermezzo entre o "antes" e o "depois" de algo que não tem pé nem cabeça, lógica ou justificativa, corpo ou membros definidos. Sérgio Dávila está com a massa crua na mão. E nunca uma massa crua teve um gosto tão bom.

Gerald Thomas é autor e diretor de teatro


NOVA YORK - ANTES E DEPOIS DO ATENTADO. De: Sérgio Dávila. Editora: Geração Editorial. Quanto: R$ 25 (256 págs.).



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