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São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2003

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RODAPÉ

Literatura brasileira antes e depois do "achamento"

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Antologias da literatura brasileira publicadas no exterior são um caminho de mão dupla. Por um lado, podem nos dar uma visão de conjunto que nós mesmos não conseguimos ter (principalmente em relação à produção recente, na qual é sempre difícil separar o joio do trigo). Por outro, mostram qual a imagem de nossa cultura literária que está sendo divulgada em outras línguas.
Já tive a oportunidade de comentar aqui a importância de algumas antologias de poesia brasileira contemporânea publicadas recentemente nos EUA, na Espanha e em Portugal. É bem mais raro, porém, que surja uma coletânea abrangente, reunindo textos de todos os períodos da história brasileira, compreendendo não apenas poesia, mas também prosa e teatro. Por isso, o livro "Scrittori Brasiliani: Testi e Traduzioni", que acaba de ser publicado na Itália, é uma obra ambiciosa, que mostra a seriedade com que nossa literatura é estudada por lá.
O volume conta com a colaboração de vários estudiosos brasileiros e é organizado por Giovanni Ricciardi (professor de literatura portuguesa e brasileira da Università degli Studi di Napoli "L'Orientale" que, nesta segunda-feira, participa de mesa-redonda na Feira do Livro de Porto Alegre).
Os textos (poemas, contos, trechos de romances e peças) são precedidos de breves informações bio-bibliográficas e comentários sobre a importância e o significado histórico de cada autor. Além disso, todos eles são publicados em português (a tradução italiana vem ao final de cada capítulo), o que faz com que suas 700 páginas sejam úteis também ao leitor brasileiro que (é importante que se diga) não encontra obra semelhante disponível no mercado nacional, já que a série "Presença da Literatura Brasileira", de Antonio Candido e José Aderaldo Castello, está desatualizada e praticamente esgotada.
Em "Scrittori Brasiliani", todos as fases da literatura brasileira estão equilibradamente representadas, incluindo desde trechos da "Carta do Achamento", de Caminha, até o teatro de Ariano Suassuna e Maria Adelaide Amaral -o que dá uma idéia da abrangência do livro. Alguns autores, por sua importância individual, têm capítulos à parte (como é o caso do padre Vieira e de Machado de Assis).
E -detalhe significativo em um momento de revalorização de identidades culturais "periféricas"- o livro se inicia com um capítulo intitulado "Cinque Milioni di Indios Fa" (Cinco Milhões de Índios Atrás), com mitos e relatos indígenas anteriores ao Descobrimento, preservados oralmente até nossos dias.
Numa obra dessa magnitude, sempre é possível fazer alguns reparos. Causa estranheza, por exemplo, ver Erico Verissimo incluído no "Itinerário Nordestino". Para um leitor brasileiro, é até compreensível que Verissimo seja visto como a contrapartida gaúcha de um regionalismo predominantemente nordestino. Mas o livro não explica isso.
Aliás, também é estranho que o capítulo intitulado "A Literatura Regionalista" enfoque não o ciclo dos anos 30 (José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos), mas autores como Simões Lopes Neto, Afonso Arinos e Monteiro Lobato (o qual, diga-se de passagem, ficaria melhor entre os pré-modernistas).
Finalmente, há um incômodo desequilíbrio entre os capítulos dedicados à prosa e à poesia contemporâneas, que cobrem dos anos 50/60 até hoje.
No caso dos ficcionistas, há lacunas inevitáveis, mas o organizador incluiu notas que ao menos mencionam alguns nomes ausentes, como Osman Lins, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio Sant'Anna e Milton Hatoum -excluídos por terem obras publicadas em italiano (já sendo, portanto, familiares ao público-alvo). Autores como Cristovão Tezza ou Bernardo Carvalho nem sequer são mencionados, mas a antologia contempla generosamente a controvertida "Geração 90".
No caso da poesia, porém, a escolha do crítico brasileiro Antonio Carlos Secchin é incoerente. Embora escreva, na apresentação do capítulo, que a poesia atual dialoga com duas vertentes principais (a vanguarda concretista e a "geração marginal"), há poucos traços de ambas em sua seleção.
Estão lá vanguardistas históricos, como os irmãos Campos e Ferreira Gullar, e representantes dos anos 70 como Chacal, Ana Cristina César e Francisco Alvim. Mas há também uma grande quantidade de poetas de dicção "sublime", de uma poesia de expressão subjetiva, que decididamente não dialoga com aquelas vertentes. Como resultado, sobra pouco espaço para poetas da nova geração, que ficou restrita a três nomes: Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz e Alexei Bueno, sendo que só os primeiros dois podem entrar na seara da chamada "poesia de invenção".
Mas a poesia, contemporânea ou não, será sempre um terreno litigioso. Portanto, as opções pessoais de Secchin ou de qualquer outro crítico não comprometem a ousadia desse livro, que deveria servir de modelo para iniciativas semelhantes no Brasil.

Scrittori Brasiliani
   
Autor: Giovanni Ricciardi
Editora: Tullio Pironti
Quanto: preço não definido (700 págs.)
Onde encomendar: Livraria Italiana (tel. 0/xx/11/3259-8915) ou no site www.tulliopironti.it/


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