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LIVROS/LANÇAMENTOS
"Capitu Sou Eu" lança personagens nada sutis em uma Curitiba de modernização inacabada
Dalton Trevisan flagra instinto provinciano
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Dalton Trevisan une, no título de seu último livro de
contos, duas heroínas da tradição
oitocentista: a machadiana Capitu e Emma Bovary, sobre quem
Flaubert um dia disse: "Madame
Bovary, c'est moi!" ("Madame
Bovary sou eu!"). A referência direta remete a um caso de infidelidade nunca provado, enquanto a
citação subentendida aponta uma
adúltera notória.
No conto epônimo do escritor
curitibano, temos uma professora
apaixonada por um aluno. No início, ela irrita-se pelo fato de o rapaz advogar a traição de Capitu.
Segundo ele, não se trata de "debate literário", mas de "questão
pessoal": Capitu é uma "simples
mulherinha à-toa".
Para os personagens de Trevisan, 78, não há sutileza nem meio-tom. Pessoas traem. Escravas de
emoções abissais e dos instintos
mais incontroláveis, também copulam o tempo todo. Das crianças
aos velhos, do malandro ao delegado. No intervalo, desconfiam,
enganam, ameaçam e matam.
Já se falou do caráter minimalista da prosa do autor ou, como o
crítico Alfredo Bosi definiu, de
"sua voluntária pobreza de
meios". Esse atributo está representado na frugalidade do estilo,
no tamanho reduzido dos contos,
mas também na repetição das situações, dos caracteres e das condições espaço-temporais.
Os personagens surgem enredados numa Curitiba semiprovinciana, cujo processo de modernização nunca se completa. Se
há um travesti que clama não viver "sem pó e a pedra" e a presença de uma solitária câmera de segurança, muito mais fortes são as
menções ao licorzinho de uva, à
antiga marchinha de Carnaval, à
pracinha, ao trenzinho que não
pára de apitar. É interessante o
uso expressivo do diminutivo
diante da sordidez e do apelo sexual dos contos. Se, por um lado,
sugere um estádio de inocência
incompatível com a exibição de
taras e obsessões, por outro, parece interromper a meio caminho o
processo de dissolução em que se
encontram os personagens.
Dessa forma, aprisionadas numa condição moral entre a inocência e a depravação, essas criaturas espelham a "cidade social"
estacionária no curso da modernização. Ao ouvir que "Curitiba já
não é a mesma", um personagem
reflete que o inverno anda "cada
ano mais gélido".
O frio dos descampados rurais
entra, assim, sorrateiro (como um
"terrorista") no espaço urbano de
Curitiba, lembrando que, embora
a cidade tenha se desenvolvido, as
forças da natureza, sejam elas atmosféricas ou ligadas a pulsões
instintivas, podem atacar qualquer um, a qualquer momento.
Capitu, irremediavelmente ligada à adúltera Bovary, não tem direito à defesa no universo de Trevisan. Sentenciada de antemão
pelo provincianismo arcaico que
perdura nas estruturas semimodernas de uma sociedade pós-agrária, está aqui destinada não só
à traição, mas às agruras de uma
existência tacanha, sem remissão
nem degredo.
Ao contrário da heroína de Machado, "enjeitada na Suíça", a
professora resigna-se com o "calvário" de humilhações a que se
submete em nome do amado:
"Condenada a vigiá-lo, a guardá-lo, a sempre esperá-lo". Sua Suíça
é aqui. Curitiba, Brasil.
Capitu Sou Eu
Autor: Dalton Trevisan
Editora: Record
Quanto: R$ 19 (114 págs.)
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