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29ª MOSTRA DE CINEMA
"CINE-FRAGMENTOS"
Cavalier filma diário experimental
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
No início, cada imagem é um
signo a refletir a identidade
do "filmador", um fragmento de
sua subjetividade: o interior da
casa dos pais, o corpo da amada, a
vista da janela do escritório, o café
em frente, o retrato de Blaise Pascal na nota de 500 francos.
É como se estivéssemos diante
de um daqueles desenhos pontilhados que se pede às crianças para completar e percebêssemos aos
poucos o contorno de um rosto. O
rosto costurado de Alain Cavalier
diante do espelho, Narciso às
avessas: um retrato que guarda os
rastros do esboço original.
"Cine-Fragmentos" é um desses
momentos decisivos no percurso
de um autor. Espécie de diário, filmado durante dez anos, é a "pièce
de résistance" da vertente mais
experimental da obra de Cavalier.
Não é a primeira vez que, cansado
das pompas do mundo, depois de
idas e vindas em torno do reconhecimento do público, Cavalier
se recolhe à escuridão e ao silêncio de sua vida privada. Como se,
para descobrir do que é feito,
mesmo por dentro, o autor precisasse se render, de vez em quando, a esses exercícios quase obscenos de desnudamento, despojando-se de qualquer argumento.
Seus cine-fragmentos são pequenos intervalos de tempo (o antes e o depois dos verdadeiros
acontecimentos) e de lugar (esses
perfeitos entre-lugares que são os
quartos de hotel). Cavalier parece
perseguir esse "entre alguma coisa" que é a matéria da vida. Aos
poucos, o tempo vai se acumulando nas lacunas. Sua ação é tão
subterrânea quanto a fronteira
que separa as duas proposições
do filme: viver e se olhar vivendo,
morrer e se olhar morrendo.
Há algo de patético nisso tudo:
fazer um diário, como diria um
escritor argentino, é se converter
de imediato num clown. Há algo
de patético e natural nessa tendência em tomar o mundo em
função de nossa própria degenerescência. Aos poucos, a morte
passa a ocupar todos os espaços
de "Cine-Fragmentos": o calvário
dos pais, o calvário do mundo na
TV, o câncer no rosto do cineasta.
E é com a mesma crença inabalável no poder de revelação de sua
câmera que Cavalier se debruça
sobre a morte. Ele usa sua câmera
quase como um instrumento
científico de verificação, um pouco como o ginecologista que examina com uma microcâmera o
útero de Françoise, sua namorada. Examinando seu rosto costurado diante do espelho, brincando de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Cavalier leva sua experiência até o fim.
Cine-Fragmentos
Direção: Alain Cavalier
Quando: hoje, às 18h20, no MIS; e dia 3,
às 19h40, no Frei Caneca Arteplex
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