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Uma festa para suspirar
Leia abaixo trechos de alguns dos textos reunidos em "Figuras do Brasil", entre eles, reportagem policial de Oswald de Andrade, resenha de
Manuel Bandeira e crônicas de Nelson Rodrigues e Cecília Meireles
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Figuras do Brasil" é uma celebração do talento nacional. Reúne
textos de todos os estilos, para todos os gostos e todas as inclinações. Se você juntasse toda esse
pessoal para uma festa, teria briga, beijo, fofoca e intriga, mas seria sem dúvida o agito mais genial
da história da raça. Montes de
gentes iriam querer entrar. Por aí
se avalia a dor de cabeça do Arthur Nestrovski, que foi quem bolou o baile e montou a lista de
convidados.
Quase todo mundo que conta
está incluído, mas é claro que alguns ficaram de fora. Como havia
limite de espaço e a base do convite tinha de ser um texto adequado, escrito na Folha nos últimos
80 anos, nem todo mundo obteve
a credencial.
Cada leitor lembrará de dois ou
três de seus favoritos que foram
barrados. Paciência. O melhor
consolo é mergulhar na festa, de
cabeça. Tem de tudo: escritores,
poetas, críticos, jornalistas, cronistas, artistas plásticos, humoristas, historiadores, cientistas sociais, ensaístas, tem até arquiteto e
cineasta. E se, com toda a sua
competência, Nestrovski não
conseguiu incluir todo mundo
que mereceria, não será esse pobre resenhista quem irá dar conta
de comentar, nestas poucas linhas, todos os achados dessa pesquisa envolvendo 350 páginas e
80 autores. Muito me desculpem
os omitidos, mas nem sempre se
consegue conversar com todos os
convidados numa festa.
Pelo que se pode captar, acompanhando a fala animada pelos
vários grupos, o assunto predominante na reunião é o Brasil, a
cultura e a identidade nacionais.
Fato que não surpreende, sendo
os convidados quem são, sendo a
Folha o que é e considerando os
compromissos de ambas as partes
com a história do Brasil e do século 20. Nessa "era dos extremos",
na expressão lapidar do professor
Hobsbawm, o país viveu de fato
momentos exacerbados de tensão, na condição esquizóide de
desempenhar o drama da sua
modernidade se debatendo nas
vicissitudes da periferia, mas sem
tirar os olhos do script que está estampado em letras garrafais bem
lá no centro.
Abundam portanto as considerações sobre essa discrepância
que dilacera nossa identidade e
desfigura nossa fisionomia,
quaisquer que elas sejam. Assim,
mesmo quando comentam fatos
do outro lado do mundo, é com
foco nos traumas brasileiros que,
por exemplo, José Lins do Rego
comenta os rituais da sociedade
soviética, Caio Prado Jr. discorre
sobre as democracias dos países
aliados e Carlos Drummond de
Andrade evoca as emoções da vitória sobre o fascismo.
Favelas e mazelas
Já o tom muda para a ironia
mordaz quando a nata da intelectualidade se debruça sobre as mazelas brasileiras. Samuel Wainer e
Orígenes Lessa perlustram Vargas e o varguismo, Augusto Frederico Schmidt denuncia o surgimento das favelas, Darcy Ribeiro
desanca o golpe de 64, Anísio Teixeira desnuda a ditadura militar,
Luís Fernando Verissimo espinafra a censura, Cláudio Abramo arregaça o salário mínimo e Janio de
Freitas expõe as entranhas do
atentado do Riocentro.
Outros autores cogitam sobre as
novas entidades que assaltaram
as imaginações e mudaram o modo de ser das pessoas no século do
cinema. Cecília Meireles e João
Cabral de Melo Neto surpreendem os sentidos suspensos nos
aviões, Rachel de Queiroz divaga
sobre os discos voadores e, vedete
das vedetes, três almas lúdicas
emplacam o futebol, Plínio Marcos, Decio de Almeida Prado e
Bento Prado Jr. Para quem gosta
do bizarro, Ignácio de Loyola
Brandão explica "por que a gente
gosta de São Paulo".
Pelo menos quatro textos abordam com enorme sensibilidade o
tema sempre fugidio da cultura
popular. Não pelo lado do folclórico ou exótico, mas pela dimensão ao mesmo tempo alumbrada
e contingente da cultura oral e dos
ritos cotidianos do povo.
É o caso de Lourival Gomes Machado sondando Volpi, Di Cavalcanti comentando os últimos dias
de Lima Barreto, Otto Maria Carpeaux desvendando a sátira de
Folengo e Bananére e José Paulo
Paes dançando ao samba de Adoniran. São textos que penetram o
inefável.
Por fim me permitam um agradecimento pela inclusão do Santíssimo Quarteto da minha geração: Glauber, Ana Cristina César,
Oiticica e Leminski, que disse
"quem respira, conspira". Essa é
uma festa para suspirar.
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da Universidade de São
Paulo e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras)
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