São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma festa para suspirar

Leia abaixo trechos de alguns dos textos reunidos em "Figuras do Brasil", entre eles, reportagem policial de Oswald de Andrade, resenha de Manuel Bandeira e crônicas de Nelson Rodrigues e Cecília Meireles

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Figuras do Brasil" é uma celebração do talento nacional. Reúne textos de todos os estilos, para todos os gostos e todas as inclinações. Se você juntasse toda esse pessoal para uma festa, teria briga, beijo, fofoca e intriga, mas seria sem dúvida o agito mais genial da história da raça. Montes de gentes iriam querer entrar. Por aí se avalia a dor de cabeça do Arthur Nestrovski, que foi quem bolou o baile e montou a lista de convidados.
Quase todo mundo que conta está incluído, mas é claro que alguns ficaram de fora. Como havia limite de espaço e a base do convite tinha de ser um texto adequado, escrito na Folha nos últimos 80 anos, nem todo mundo obteve a credencial.
Cada leitor lembrará de dois ou três de seus favoritos que foram barrados. Paciência. O melhor consolo é mergulhar na festa, de cabeça. Tem de tudo: escritores, poetas, críticos, jornalistas, cronistas, artistas plásticos, humoristas, historiadores, cientistas sociais, ensaístas, tem até arquiteto e cineasta. E se, com toda a sua competência, Nestrovski não conseguiu incluir todo mundo que mereceria, não será esse pobre resenhista quem irá dar conta de comentar, nestas poucas linhas, todos os achados dessa pesquisa envolvendo 350 páginas e 80 autores. Muito me desculpem os omitidos, mas nem sempre se consegue conversar com todos os convidados numa festa.
Pelo que se pode captar, acompanhando a fala animada pelos vários grupos, o assunto predominante na reunião é o Brasil, a cultura e a identidade nacionais. Fato que não surpreende, sendo os convidados quem são, sendo a Folha o que é e considerando os compromissos de ambas as partes com a história do Brasil e do século 20. Nessa "era dos extremos", na expressão lapidar do professor Hobsbawm, o país viveu de fato momentos exacerbados de tensão, na condição esquizóide de desempenhar o drama da sua modernidade se debatendo nas vicissitudes da periferia, mas sem tirar os olhos do script que está estampado em letras garrafais bem lá no centro.
Abundam portanto as considerações sobre essa discrepância que dilacera nossa identidade e desfigura nossa fisionomia, quaisquer que elas sejam. Assim, mesmo quando comentam fatos do outro lado do mundo, é com foco nos traumas brasileiros que, por exemplo, José Lins do Rego comenta os rituais da sociedade soviética, Caio Prado Jr. discorre sobre as democracias dos países aliados e Carlos Drummond de Andrade evoca as emoções da vitória sobre o fascismo.

Favelas e mazelas
Já o tom muda para a ironia mordaz quando a nata da intelectualidade se debruça sobre as mazelas brasileiras. Samuel Wainer e Orígenes Lessa perlustram Vargas e o varguismo, Augusto Frederico Schmidt denuncia o surgimento das favelas, Darcy Ribeiro desanca o golpe de 64, Anísio Teixeira desnuda a ditadura militar, Luís Fernando Verissimo espinafra a censura, Cláudio Abramo arregaça o salário mínimo e Janio de Freitas expõe as entranhas do atentado do Riocentro.
Outros autores cogitam sobre as novas entidades que assaltaram as imaginações e mudaram o modo de ser das pessoas no século do cinema. Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto surpreendem os sentidos suspensos nos aviões, Rachel de Queiroz divaga sobre os discos voadores e, vedete das vedetes, três almas lúdicas emplacam o futebol, Plínio Marcos, Decio de Almeida Prado e Bento Prado Jr. Para quem gosta do bizarro, Ignácio de Loyola Brandão explica "por que a gente gosta de São Paulo".
Pelo menos quatro textos abordam com enorme sensibilidade o tema sempre fugidio da cultura popular. Não pelo lado do folclórico ou exótico, mas pela dimensão ao mesmo tempo alumbrada e contingente da cultura oral e dos ritos cotidianos do povo.
É o caso de Lourival Gomes Machado sondando Volpi, Di Cavalcanti comentando os últimos dias de Lima Barreto, Otto Maria Carpeaux desvendando a sátira de Folengo e Bananére e José Paulo Paes dançando ao samba de Adoniran. São textos que penetram o inefável.
Por fim me permitam um agradecimento pela inclusão do Santíssimo Quarteto da minha geração: Glauber, Ana Cristina César, Oiticica e Leminski, que disse "quem respira, conspira". Essa é uma festa para suspirar.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da Universidade de São Paulo e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras)


Texto Anterior: Está tudo aqui - Contos, poemas, crônicas, ensaios, memórias e perfis
Próximo Texto: Di Cavalcanti: Triste fim de Lima Barreto
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.