|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"DEUS-EX-MACHINA"
Mágica de Gerald Thomas não funcionou
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
No teatro grego, quando a
trama se tornava intrincada
demais, não raro o dramaturgo
fazia intervir um deus, trazido pela maquinaria do teatro (a "machina"), que arbitrariamente resolvia todos os impasses. Aristóteles condenou o recurso, e
"Deus-ex-machina" virou um
termo para denunciar soluções
artificiais.
Para Gerald Thomas, todo texto
que estabelece uma causa e um
efeito para as ações é "Deus-ex-machina". No universo de suas
peças, a sequência de ações denuncia por sua aparente arbitrariedade a angústia da busca por
um sentido no mundo. Foi assim
na Dinamarca em 1996, quando,
junto à Cia. Teatral Dr. Dante
(que viria a se tornar no cinema o
núcleo do movimento Dogma),
Gerald Thomas desnorteou e entusiasmou crítica e platéia com
"Chief Butterkniefe and the Hauting Spirit of his Archenemy,
Kryptodick", montagem na qual
atores famosos, formados no naturalismo introspectivo, surgiam
vestidos de Super-Homem ou James Bond (novos deuses encarregados de salvar o mundo, mas já
desencantados), criando ambiguidade de tom que começava
provocando a hilaridade montyphitoniana e acabava por levar o
público às lágrimas.
É esse o texto que estreou semana passada no Rio, "Deus-ex-machina". Para quem já assistiu ao
vídeo da montagem dinamarquesa, é impossível não notar que algo se diluiu seriamente na tradução. Talvez fosse melhor criticar o
espetáculo atual por ele mesmo,
ignorando a sombra do original.
Porém o próprio diretor, tanto no
longo texto evocativo do programa quanto na iniciativa de mudar
o nome de sua companhia em homenagem ao Dogma (o Ópera Seca se chama Pragma, "provisoriamente"), incita à comparação.
Aparentemente, nada desse espetáculo foge do que se espera de
Thomas. As referências a espetáculos anteriores continuam. A
equipe técnica, Wagner Pinto, na
luz, Marco Aurélio, no som, continua firme no comando da maquinaria com competência.
Duas coisas impedem, porém, a
mágica de funcionar como de hábito. Antes de tudo, talvez seja a
primeira vez que Thomas não faz
um espetáculo sob medida, escrevendo para o aqui e agora de cada
ator. Tendo texto completo e
marcas prontas, os atores puderam não se expor, escapar do
acuamento estrategicamente proposto pelo processo de montagem como foi na Dinamarca.
Assim, se Fabiana Guglielmetti
e Marcos Azevedo têm já maturidade suficiente para conseguir o
delicado balanço entre o histrionismo nonsense e a exposição de
suas fragilidades, garantindo os
bons momentos do espetáculo,
Amadeo Lamounier, embora
apoiado em técnica segura, cede
muitas vezes à sede do público pelo travesti de besteirol. Bruce
Gomlevsky vem se tornando um
excelente alter ego do diretor, mas
dessa vez parece imitar marcas
sem interiorizá-las. Joelson Gusson é impagável, fazendo seu James Bond remeter a Mr. Bean,
mas perde um pouco a força ao
tomar a palavra. A beleza frágil de
Paula Tolentino não encontrou
ainda função, e o resto do elenco
vai do insosso ao constrangedor.
Além disso, a colcha de retalhos
de citações soa muitas vezes anacrônica. Que interesse pode ter
ainda a referência ao Réveillon de
1999? Mais ainda: a confissão de
fragilidade do Super-Homem,
impactante para um Gerald Thomas no auge da fama, soa auto-indulgente quando adaptada para o
mundo de depois do 11 de setembro. É emblemática por isso a cena em que o elenco hesita em torno do índio-alter ego que, tendo
abandonado a tribo por gostar de
Joyce e Wagner, cai mortalmente
ferido ao presenciar a queda do
World Trade Center. Se o Deus-ex-machina está morto, fica patente com esse espetáculo que a
máquina não funciona sem seu
Deus. Espera-se, com a confiança
devida a tudo o que Gerald Thomas já fez e fará, que ele se levante
logo de seu último colapso.
Deus-ex-machina
Concepção e direção: Gerald Thomas
Com: Cia. Pragma
Onde: teatro Sesc Copacabana (r.
Domingos Ferreira, 160, Rio, tel. 0/xx/21/
2547-0156)
Quando: de qui. a sáb., às 21h, e dom., às
20h; até 16/12
Quanto: R$ 20 e R$ 10
Texto Anterior: Pique-Pique Próximo Texto: Da Rua - Fernando Bonassi: Sobre a beleza Índice
|