São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2001

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"DEUS-EX-MACHINA"

Mágica de Gerald Thomas não funcionou

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

No teatro grego, quando a trama se tornava intrincada demais, não raro o dramaturgo fazia intervir um deus, trazido pela maquinaria do teatro (a "machina"), que arbitrariamente resolvia todos os impasses. Aristóteles condenou o recurso, e "Deus-ex-machina" virou um termo para denunciar soluções artificiais.
Para Gerald Thomas, todo texto que estabelece uma causa e um efeito para as ações é "Deus-ex-machina". No universo de suas peças, a sequência de ações denuncia por sua aparente arbitrariedade a angústia da busca por um sentido no mundo. Foi assim na Dinamarca em 1996, quando, junto à Cia. Teatral Dr. Dante (que viria a se tornar no cinema o núcleo do movimento Dogma), Gerald Thomas desnorteou e entusiasmou crítica e platéia com "Chief Butterkniefe and the Hauting Spirit of his Archenemy, Kryptodick", montagem na qual atores famosos, formados no naturalismo introspectivo, surgiam vestidos de Super-Homem ou James Bond (novos deuses encarregados de salvar o mundo, mas já desencantados), criando ambiguidade de tom que começava provocando a hilaridade montyphitoniana e acabava por levar o público às lágrimas.
É esse o texto que estreou semana passada no Rio, "Deus-ex-machina". Para quem já assistiu ao vídeo da montagem dinamarquesa, é impossível não notar que algo se diluiu seriamente na tradução. Talvez fosse melhor criticar o espetáculo atual por ele mesmo, ignorando a sombra do original. Porém o próprio diretor, tanto no longo texto evocativo do programa quanto na iniciativa de mudar o nome de sua companhia em homenagem ao Dogma (o Ópera Seca se chama Pragma, "provisoriamente"), incita à comparação.
Aparentemente, nada desse espetáculo foge do que se espera de Thomas. As referências a espetáculos anteriores continuam. A equipe técnica, Wagner Pinto, na luz, Marco Aurélio, no som, continua firme no comando da maquinaria com competência.
Duas coisas impedem, porém, a mágica de funcionar como de hábito. Antes de tudo, talvez seja a primeira vez que Thomas não faz um espetáculo sob medida, escrevendo para o aqui e agora de cada ator. Tendo texto completo e marcas prontas, os atores puderam não se expor, escapar do acuamento estrategicamente proposto pelo processo de montagem como foi na Dinamarca.
Assim, se Fabiana Guglielmetti e Marcos Azevedo têm já maturidade suficiente para conseguir o delicado balanço entre o histrionismo nonsense e a exposição de suas fragilidades, garantindo os bons momentos do espetáculo, Amadeo Lamounier, embora apoiado em técnica segura, cede muitas vezes à sede do público pelo travesti de besteirol. Bruce Gomlevsky vem se tornando um excelente alter ego do diretor, mas dessa vez parece imitar marcas sem interiorizá-las. Joelson Gusson é impagável, fazendo seu James Bond remeter a Mr. Bean, mas perde um pouco a força ao tomar a palavra. A beleza frágil de Paula Tolentino não encontrou ainda função, e o resto do elenco vai do insosso ao constrangedor.
Além disso, a colcha de retalhos de citações soa muitas vezes anacrônica. Que interesse pode ter ainda a referência ao Réveillon de 1999? Mais ainda: a confissão de fragilidade do Super-Homem, impactante para um Gerald Thomas no auge da fama, soa auto-indulgente quando adaptada para o mundo de depois do 11 de setembro. É emblemática por isso a cena em que o elenco hesita em torno do índio-alter ego que, tendo abandonado a tribo por gostar de Joyce e Wagner, cai mortalmente ferido ao presenciar a queda do World Trade Center. Se o Deus-ex-machina está morto, fica patente com esse espetáculo que a máquina não funciona sem seu Deus. Espera-se, com a confiança devida a tudo o que Gerald Thomas já fez e fará, que ele se levante logo de seu último colapso.


Deus-ex-machina
  
Concepção e direção: Gerald Thomas
Com: Cia. Pragma
Onde: teatro Sesc Copacabana (r. Domingos Ferreira, 160, Rio, tel. 0/xx/21/ 2547-0156)
Quando: de qui. a sáb., às 21h, e dom., às 20h; até 16/12
Quanto: R$ 20 e R$ 10




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